
12.12: O Dia
Golpe, resistência e cinema: filme revela a turbulência política da Coreia do Sul
Por Humberto Silva | 23.01.2025 (quinta-feira)

O cinema da Coreia do Sul é um dos mais badalados e aguardados da prolífica produção cinematográfica do extremo-oriente: Oldboy (2003), de Park Chan-wook, e Parasita (2019), de Bong Joon-ho, deram enorme projeção internacional os filmes “coreanos”. Park Chan-wook e Bong Joon-ho ascenderam como nomes incontornáveis no cinema internacional; aguardados, portanto, nos principais festivais de cinema no mundo.
Como em toda cinematografia com identificação nacional – inclusive para exportação – a expectativa em torno de traços reconhecíveis tanto com respeito a assuntos abordados quanto com estilizações características. De modo a se supor um gabarito no qual de um filme coreano espera-se um filme coreano, como de um filme iraniano espera-se um filme iraniano. Ver um filme coreano, então, gera a expectativa de ter à frente temas e um jeito próprio de filmar daquela cinematografia.
Agora, com respeito ao extremo-oriente, especificamente da Coreia do Sul não nos chegam filmes (não é de meu conhecimento) com foco em tema político stricto sensu e, mais, com recorte em momento localizado de sua história. Esse o dado que me surpreendeu ao assistir a 12.12 O Dia, de Kim Sung-su. O assunto: o Golpe de Estado que levou ao poder o General Chun Doo-hwan, na sequência do assassinato do ditador Park Chung-hee em 1979.

A hierarquia militar e as bases estratégicas são retratadas com precisão, embora a trama exija atenção aos detalhe.
Assino este texto acentuando minha ignorância: os nomes aqui citados podiam até estar hibernando em minha memória sexagenária, mas sinceramente ganharam relevo para mim só ao ver 12.12 O Dia. Começo este texto, então, com cautela frente a dificuldades – com o fim de não ser leviano intelectualmente – para tratar de um filme cujos acontecimentos narrados (um Golpe de Estado que realmente ocorreu) me escapam.
Esse cuidado, entretanto, não deve ser entendido como pretexto para desculpar a quebra do interdito: não escreve sobre o assunto porque sou ignorante com respeito à história da Coreia (deliberadamente aqui incluindo a do Norte e a do Sul). Num filme, qualquer filme, é impossível aquinhoar nossa fração de ignorância. Não advogo ser impossível escrever excelente texto sobre Ainda Estou Aqui: ignorando quem foi Giovanni Bucher na fila do pão.
O cinema – isso para mim um de seus fascínios – pode nos tocar (eis os segredos de uma linguagem universal) naquilo que mesmo o autor de um filme não suporia. Mas a cautela aqui é válida para não se cair na armadilha de se fazer afirmação contundente desconhecendo a política e a história de um país. Esclareço, retomando a alusão a Ainda Estou Aqui: imagino a dificuldade de um espectador estrangeiro para entender o nexo entre o sequestro do embaixador suíço Giovanni Bucher e o assassinato de Rubens Paiva.
Sobre 12.12 O Dia. Começa com o assassinato de Park Chung-hee e termina com a vitória do Golpe de Estado (fiz questão de ver o filme sem consultar manual de história – não sabia, ou lembrava, pois, o desfecho; mas, no caso indago sobre o sentido da palavra spoiler para quem conhece a história da Coreia do Sul – Kim Sung-su, bem entendido, não é Quentin Tarantino). Isso posto, passo então, de modo bem amplo, a realçar o que em 12.12. O Dia me tocou mais marcadamente.
A narrativa dos acontecimentos segue ritmo bem acelerado. Kim Sung-su exibe diversos focos que compõem o quadro de eventos onde circulam inúmeros personagens na hierarquia do exército coreano. Explorando exaustivamente a montagem paralela, e em alguns momentos dois ou três quadros num mesmo plano, Kim visa dar conta simultaneamente do que se passa entre o grupo rebelde que articula o golpe e a resistência a ele.

A burocracia militar e a hierarquia de poder são elementos centrais para entender a trama do golpe.
Com efeito, posições de comando do exército e da ordem institucional, assim como a facção sediciosa (Hanahoe), são citados como uma metralhadora giratória. E a mim, sem o organograma fica difícil apreender como se estruturava a burocracia, a pirâmide de poder e a efetiva força do quartel tal ou qual, da base militar tal ou qual, para impedir ou avançar o golpe. Rostos e mais rostos despontam e com eles decisões tomadas se alternam numa velocidade que torna difícil apreender, ao menos para minha percepção, quem está de um lado e do outro na condução da trama e na evolução dos acontecimentos.
Caso essa confusão possa se estabelecer em muitos momentos do filme (a posição do presidente que assumiu com a morte de Park Chung-hee me é indecifrável… – ele se conduz movido pela legalidade, mas ao fim se mostra “estranhamente” indiferente à eminência de uma guerra civil…), por outro lado em 12.12 O Dia a principal resistência ao movimento golpista é concentrada na figura do Majo General Lee Tae-shin. Ocorre que só depois de ver o filme li que Lee Tae-shin é um personagem ficcional (como dar sentido a um spoiler aqui?). Na verdade, guardaria semelhança com Jang Tae-hwan, que nos acontecimentos não teria tido o papel que lhe coube no filme…
Kim Sung-su, inegável, tem na oposição Chun Doo-wang e Lee Tae-shin um vilão e um herói condenado ao fracasso. Para o espectador, é bem demarcado o papel de vilão e mocinho no infausto dia que culminou com a vitória do golpe e uma nova ditadura que se impôs na Coreia do Sul, comandada por Chun Doo-wang. Nova? Sim. Pois então que papel coube a Jang Tae-hwan (Lee Tae-shin) na ditadura de Park Chung-hee? Um coreano com sua história ao lado estaria julgando como Jang Tae-hwan deveria ter resistido ao golpe? Por que um personagem ficcional ao invés do real?
Não sei. Mas no que me toca, e creio tocar a muitos brasileiros que o veja, podemos assistir a um filme coreano com narrativa de difícil absorção nos pormenores do poder e tão próxima de uma experiência recente por que passamos – eis os segredos de uma linguagem universal: 12.12. O Dia, nos remete, com desfechos antagônicos, a 08.01, o dia em que poderíamos (ênfase no futuro do pretérito) caminhar para uma nova ditadura.
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