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Festivais

78º Cannes (2025) – O Agente Secreto

Quando a ótica pernambucana reinventa o cinema político e de ação.

Por Luiz Joaquim | 18.05.2025 (domingo)

Há algo da abertura de Era uma vez no Oeste de Sergio Leone no prólogo de O agente secreto, sexto longa-metragem de Kleber Mendonça Filho. Ainda que não sobressaia no prólogo do filme brasileiro uma trilha sonora originalmente criada tão marcante como a do Ennio Morricone para pontuar as belas tomadas que abrem o novo filme do diretor de Bacurau, está lá o estranhamento silencioso e tenso do encontro de potenciais inimigos na amplitude de um desértico ambiente lindamente fotografado, decupado e editado. 

Por esse e por diversos outros motivos bem distribuídos ao longo das 2h40 de duração de O agente secreto, no momento em que publicamos esse texto, aplausos efusivos e duradouros são longamente escutados no Palácio dos Festivais, em Cannes, em ovação ao diretor Kleber Mendonça Filho, à produtora Emilie Lesclaux e à estrela Wagner Moura junto à toda a equipe do filme. Os aplausos se misturam ao som dos pífanos e da percussão de caboclinhos pernambucanos que embalam a subida dos créditos finais da obra. 

Ainda sobre o prólogo, estamos num posto de combustível à beira de uma estrada margeada por vasta plantação de cana de açúcar. É lá que nosso herói Marcelo/Armando (Wagner Moura), professor pernambucano em viagem para o Recife, após três dias rodando em seu volks amarelo – o carro andando apenas com o “cheiro” da gasolina -, para ali no meio do nada e percebe que há um defunto estirado no chão, logo adiante. 

Depois de uma contextualização mínima sobre o acontecido, dada pelo frentista corpulento, míope e desdentado, uma viatura da Polícia Rodoviária surge no horizonte e o que já estava tenso torna-se ainda mais nervoso. Afinal, estamos em pleno carnaval de 1977, uma época em que o Brasil, como indicam os créditos iniciais, vivia sob muita “pirraça”.

Wagner como Marcelo/Armando em cena do primoroso prólogo de “O Agente Secreto”

Nosso parágrafo acima descreve com palavras a tal abertura do filme que pouco usa palavras explicativas para estabelecer a tensão do contexto. É na combinação de informações pequenas – próprias do roteiro -, e registradas silenciosamente nas imagens que vão compor (e COMO vão compor) o filme, que Kleber apresenta sua competência como um artista cinematográfico.

Seja pela forma como desvela ao espectador o fétido defunto, esquecido ali há dias; seja como compõe o enquadramento do policial rodoviário dentro do carro de Marcelo/Armando, procurando problema, com o rosto preocupado do professor ao fundo, numa pequena brecha do quadro; seja pelo carro que passa na estrada, cheio de foliãs fantasiadas de caboclinhas, enquanto Marcelo/Armando, policial e frentista olham calados o carro indo embora; seja também por gestos simples, pequenos, mas reveladores do tamanho da tensão, como o do policial baixando o capô do fusca, mas não travando-o, só porque pode fazer isso.

Há nesses códigos da abertura de O agente secreto um sofisticado desenho visual que sintetiza o abuso de poder enraizadamente fincado na história da cultura brasileira. Seja em 1977, 1877 ou em 2025. É um tema caro ao cinema de Kleber Mendonça Filho, que, em seu novo trabalho, desenvolve os conflitos entre o avanço da ciência, tocada por uma equipe de pesquisadores liderados por um professor nordestino, versus o interesse financeiro de um corrupto industrial de escala nacional.

É também do cinema de KMF mesclar, ou contrapor, o espinhoso assunto com personagens amorosos e genuinamente cordiais, não se esquivando também, ou melhor, fazendo questão de fazer correr em paralelo à trama central outras que só são plenamente reconhecíveis para seus conterrâneos, tal qual a lenda urbana, específica do Recife, d’A Perna Cabeluda – uma entidade que assombrou os recifenses na segunda metade dos anos 1970. Mas o faz tornando tal código local em algo mundialmente compreensível e divertido por meio das armas gramaticais do cinema de gênero. 

Engana-se quem imaginar que a inserção d’A Perna Cabeluda aqui é gratuita ou só um apreço do cineasta pelo fantástico. Kleber e quem compreende criticamente aquele período sabem que crimes reais, ou mesmo simples malvadezas sociais realizadas no Recife, eram creditadas, à Perna Cabeluda. Era algo instigado pela própria imprensa, que vendia muito jornal com as assombradas histórias, enquanto os verdadeiros criminosos saíam ilesos, com um álibi impossível de ser investigado.

Voltando aos personagens (vamos chamar assim) cordiais e amorosos, podemos dizer que Kleber deixa com O agente secreto uma marca definitiva – e talvez a mais bem resolvida até agora em sua carreira -, de criar um complexo de personagens que, cada um a seu tempo e modo, tem uma importância particular dentro do todo do enredo. Mais do que importância definidora para a trama, uma importância humana.

Isso porque o realizador pernambucano, ao longo do filme, vai nos alimentando com sutilezas, algo revelador da história de cada um desses personagens, e não apenas os coloca diante de nós em função daquilo que a trama exige para o enredo. 

Não é algo simples de fazer se considerarmos a necessidade de uma coerente e, se possível, sedutora amarração entre duas dezenas de personagens além do protagonista, como vemos aqui. E é logicamente por esse desenho humano bem traçado que somos tão atraídos por cada uma das figuras do cinema de Kleber Mendonça (com destaque maior para O agente secreto). No novo filme, até os seus mercenários têm uma história de vida (medonha, é verdade, mas têm). É também assim que O agente… nos seduz tão facilmente.

Elenco afinado, afiado em seus personagens, que conhecemos verticalmente (e deles gostamos) pela pena e câmera de KMF

Essa sedução é algo mais fácil de construir quando se está num formato em que o tempo duradouro – como uma série ou telenovela – é um aliado para apertar os laços entre espectador e personagens. Num filme, quando queremos ser amigos dos personagens, é porque não só os reconhecemos, mas também os entendemos. É quando fica claro o tamanho do talento do realizador não apenas pela sua capacidade de síntese ao criá-los num roteiro, mas também por sua capacidade de administrar atores em seus potenciais para fazer florescer características marcantes ali, àqueles personagens. 

Em O agente secreto prestem atenção, por exemplo, na gigante em que se torna a atriz potiguar Tânia Maria (você a verá em Seu Cavalcanti, de Leonardo Lacca, e já a viu em Bacurau) como Dona Sebastiana. Ela é a dona do condomínio que hospeda, no Recife, Marcelo/Armando (W. Moura), recém-chegado de Brasília.

A naturalidade da fala de seus diálogos, no comportamento diante da câmera e na interação com quem contracena fazem das sequências com a atriz algo reconfortante, quase como um abraço de um amigo autêntico. E não podia ser diferente, menos coerente, considerando o serviço que Dona Sebastiana faz com os moradores do seu condomínio, todos refugiados de seu próprio país. 

Para além desse condimento humano e da ojeriza contra o abuso de poder, outros dois aspectos fazem do novo filme de KMF algo destacável e também uma daquelas obras que fatalmente queremos rever pelo prazer de perceber melhor a eloquência das diversas sutilezas em sua amplitude, ali largadas nunca por acaso. 

Um primeiro aspecto: há um roteiro provocador e bem articulado, que nos pega pela mão e nos coloca ao lado de Marcelo/Armando em sua vida secreta. Só que nos deixando numa ignorância estimulante, ou melhor, numa carência de explicações da qual só seremos contemplados sobre a gravidade da coisa bem adiante, no momento oportuno. 

Até lá, o meticuloso trabalho de caracterização na reconstrução de uma Recife de 1977, seja pela direção de arte de Thales Junqueira, pelo figurino de Rita Azevedo, pela maquiagem e cabelo da equipe da Marisa Amenta com Nanda Leal, além de um ou outro CGI complementando ali e acolá, tudo vai enchendo os olhos, em particular dos pernambucanos (mas não só deles), para uma época distante e, ao mesmo tempo, tão presente. 

Roteiro provocador e bem articulado, que nos pega pela mão e nos coloca ao lado de Marcelo/Armando (W. Moura) em sua vida secreta

Como uma constante nos filmes de KMF, O agente… é dividido em partes: O pesadelo do menino; Instituto de identificação; Transfusão de sangue. Capítulos que não são necessariamente explicativos ou dependentes em suas divisões.

Mas se pode dizer que, num primeiro momento, conhecemos Marcelo/Armando em seu retorno misterioso ao Recife, além de Dona Sebastiana e os seus protegidos; num segundo momento, detalhes da trama e do mistério por trás da identidade de Marcelo/Armando ganham mais camadas de informação; e, num terceiro momento, passado e futuro começam a ganhar conexões que não apenas articulam uma história perdida entre pai e filho, como também aponta para a memória, ou a falta dela, num Brasil que viveu na segunda metade do século passado um brutal sistema de apagamento de vozes dissonantes contra a truculenta ditadura civil-militar.

Tal qual Ainda estou aqui, de Walter Salles, O agente secreto conta também, a seu modo, a história de um fantasma, ou melhor, de alguém que só poderia ter a sua dignidade resgatada décadas depois, por meio de uma insistente investigação, propiciada apenas por um Estado democrático de direito, e que olha criticamente para o nosso passado opressor (passado?).

No tanto do cenário construído por KMF para o Recife de 1977, há espaço até para uma correlação entre o caso contemporâneo do menino Miguel, de 5 anos, cuja morte em 2020 chocou o país ao cair do nono andar das Torres Gêmeas na capital pernambucana, onde residia Sari  Côrte Real, a patroa da mãe de Miguel. 

KMF no set de “O Agente Secreto”

Entornando esse caldo, Kleber Mendonça despeja (mas sem esticar a corda) toda a sua bagagem cinematográfica de referências diversas, mas, importante, sem ressaltá-las para além do que é mais vital num filme: a boa condução da história e os seus personagens.

As estratégias narrativas e estéticas, tão bem resolvidas pelas lentes da diretora de fotografia Evgenia Alexandrova (de Sem coração), estão aqui em função do filme e não a partir dele. Não estão como arroubos excitados por conta da possibilidade de recursos financeiros ou da tecnologia digital disponível. 

E, ainda, como condimento determinante, aquele que dá sabor e cor ao cinema de Kleber Mendonça Filho, há uma apropriação, como poucos sabem fazer, de aspectos únicos da cultura pernambucana – confluindo para uma ideia de fusão cinematográfica. 

Com O agente secreto, por exemplo, nasce também uma sequência já antológica no cinema brasileiro de perseguição, a pé, de bandido contra bandido, pelo Recife de 1977, sob o ritmo dos pífanos de caboclinhos. É como ver o melhor do cinema mundial sonorizado pela que há de mais cru e autêntico do Pernambuco profundo. 

E neste momento, enquanto esse texto é publicado, o mais importante festival de cinema do mundo está aplaudindo esta invenção. Sim, trata-se de uma invenção. E são poucos os que hoje inventam no cinema. 

Para não dizer que não falamos das flores, ou para não dizer que não tiramos algumas de suas pétalas, há de se ressaltar a participação divertida de Udo Kier como o alfaiate alemão Hans, que, no contexto do todo para a trama de O agente secreto, não se apresenta como decisivo, ou mesmo necessário, não indo além de uma curiosidade a respeito da presença alemã, vinculada a Segunda Guerra Mundial, no Recife daqueles anos.

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