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Entrevistas

Entrevista: Eduardo Coutinho/João Moreira Salles

Teoria e experiência se encontram. Uma conversa (2005), com os diretores de Peões e Entreatos no Recife

Por Luiz Joaquim | 12.07.2020 (domingo)

– entrevista originalmente publicado no caderno Programa, da Folha de Pernambuco, em 30 de maio de 2005

Semana passada, Eduardo Coutinho e João Moreira Salles estiveram no Recife para divulgar o lançamento de “Peões” e “Entreatos” (em cartaz no Cinema do Parque), filmes que mostram, respectivamente, o Lula das greves do ABC Paulista e o Lula candidato a presidência da República em 2002. Nessa entrevista, ambos falam da concepção das produções, de sua complementariedade, das opções que ali fizeram e do próximo projeto, que toma lugar no interior do Nordeste

Entrevista / Eduardo Coutinho e João Moreira Salles

A Videofilmes (produtora e distribuidora) tem sugerido aos exibidores mostrar os filmes sequenciadamente, e a imprensa, tem dito que os filmes são complementares. Queria ouvir, na palavra de vocês, em que os filmes são complementares.

Coutinho – Você tem mais de 20 anos de um sujeito que era desconhecido, ou apenas conhecido por um movimento social importante, a greve dos metalúrgicos, e depois temos esse mesmo sujeito, candidato a presidência da república por três vezes, e daí você vê que está filmando uma campanha que por si só é histórica e vitoriosa. Quando colocamos esses dois mundos, o da idelogia no passado e o das concessões nos dias de hoje, então vemos melhor o quadro sobre esse personagem. Isolados, os filmes podem ser vistos de forma diferente. Mas quando juntos, há uma tendência de desqualificar o Lula operário, do Lula candidato, o que é complicado porque as negociações, nos dois tempos, funcionavam de outro forma e dimensão. De modo que, no complementar, a lição é mais ambíguoa do que parece. 

Salles – Acho que a complementariedade é clara. No início do projeto o Lula nos disse que não dá pra entendê-lo sem entender a cultura operária e o sindicalismo. Isso não está no meu filme, está no do Coutinho. No meu filme ele aparece buscando o voto do Brasil inteiro. Não vemos o Lula falando para suas bases, mas sim para um país. No filme do Coutinho, não dá para saber qual o destino do grande personagem desse homem do sindicalismo moderno brasileiro. Então acho que a complementariedade é absoluta. 

Coutinho, pode-se dizer que “Peões” foi um filme de encomenda, diferente de seus outros projetos pessoais? Se foi, em que condições isso interferiu na confecção de “Peões”?

Coutinho – Não foi de encomenda. Eu já pensava nesse assunto antes do convite do João (Moreira Salles). Pensava naquelas carinhas na multidão daqueles comícios. Uma vez pensei em fazer esse projeto em São Paulo, com uma universidade, de cinco meses, sem profissionais, e eu sabia que era um trabalho caro e difícil então desisti. Quando o João teve a idéia de fazer o que fazem alguns documentaristas na Europa focando candidatos a presidência, fiquei interessado. E todos sabiam que a eleição de 2002, independente do resultado, teria um dimensão extraordinária. 

Salles, no seu filme anterior “Nelson Freire” você aconpanhou o protagonista por dois anos,  com Lula foram 30 dias. Que cuidados e estratégias você tomou para garantir o máximo de imagens para compor um filme?

Esses 30 dias específicos que filmei tinha muita coisa em risco, a vitória era extraordinária, a derrota era um tombo imenso, o maior que um político pode tomar. Não como há como errar com o acesso que eu tive nessa campanha e ainda mais de um candidato com chances reais de ganhar. Nelson Freire levei dois anos porque precisava encontrar momentos interessantes. Os útimos 30 dias de uma campanha são sempre interessantes. O que não significa que você terá um filme bom, porque aí entram outras variáveis. Não precisaria de sete meses pra conseguir o que consegui. O projeto original implicava em filmar apenas o 2º turno, isso significava três semanas, e eu acabei no primeiro turno porque o Lula começou a crescer nas pesquisa e havia uma chance de não haver 2º turno. Portanto não quis me arriscar. 

Salles, na apresentação que fez no último Festival de Brasília você disse que preferiu mostrar o Lula privado e não o público, porque percebeu que no primeiro estava o Lula mais “rico”. Pode comentar essa decisão?

Foi por uma séria de razões. Eu não parti para fazer o filme do entreato, parti para fazer um fime convencional, então filmei tudo.Tinha 170 horas de imagem. Passei nove meses montando um filme que alternava momentos públicos com privados. A primeira razão pela qual optei pelo privado foi porque eu soube (risos) montar um filme que conseguisse reunir a parte público e privada. Isso por um série de razões de ritmo, esse dois materiais não combinavam bem. A segunda razão, diz respeito a querer mostrar ao público o que ele conhece menos. A parte pública de uma campanha, mal o bem, é visto pelos comícios, pelos telejornais e o horário político eleitoral. Por isso entendia que o material privado era mais inédito e revelador. Alí Lula fala com menos pressão. Com menos censura. Uma fala menos estratégica, porque não é uma fala para 500 mil pessoas ou uma câmera de uma rede nacional. Ele fala de coisas que fogem da urgência da campanha, que é sempre mais interessante. Fazer o filme sobre os momentos fracos de uma campanha é fugir quase de forma irritante do fato, da informação. E isso é um raciocínio que venho fazendo a respeito de o que um documentário deveria privilegiar. 

Coutinho, em Brasília, você comentou que o depoimento do último entrevistado de “Peões” provoca uma reviravolta quando ele te pergunta se você já foi peão. Em que medida aquilo enriqueceu teu filme

Acontece o seguinte, não há tempo no filme. Não há ordem. Por acaso, o último personagem do filme fala do tempo. Fala-se a hora, ele diz que acabou de votar. O acaso aqui aconteceu quando o último entrevistado se diferencia dos outros quando em vários sentidos. Não porque acho que ele tem uma força plástica no rosto dele, mas fora isso ele vai entrando numa melancolia e cava-se um buraco ali, várias vezes já filmei isso, é muito desagradavel. Isso se processa da seguinte forma, você pergunta, ele responda e no meio surge um vazio e você deixa ou às vezes intervem. As pessoas até choram, isso não é problema, mas já aconteceu de eu interromper porque eu não aguentava, muito embora eu saiba que esse sofrimento é bom. Felizmente, dessa vez eu aguentei. O merito aqui é simplesmente não fazer nada. E naquele caso o cara saiu do buraco magistralmente, foi buscar força não sei onde para olhar na minha cara e perguntar “você já foi peão?”. No filme eu digo, “Não… ao que eu saiba”. Tirei o “ao que eu saiba” porque perdia a força. Foi surpreendente, porque eu passei a ser o entrevistado. Quando isso acontece naturalmente, a relação de sujeito e objeto muda, é maravilhoso.  A coisa não surge de um outro, mas de um contexto. Parece que do ponto de vista dramaturgico o filme não termina bem para o público. Em Brasília, a recepção foi frígida. 

Salles, o que ficou de fora da edição final que você lamentou excluir?

Salles – A própria aventura de fazer o filme era interressante, mas não achei uma razão para incuir isso no filme. É um material bacana que deve parar no DVD. O entusiasmo do povo brasileiro naquele momento também não está no meu filme, embora eu o tenha registrado, e eu lamento a ausência.

Coutinho, na plano que você utiliza do “ABC da Greve”, de Leon Hirszerman, hávia originalmente um locação contando a biografia de Lula. Em “Peôes” você suprime a locução.

Coutinho – Suprimi porque aquela locação esconde o que a imagem tem para mostrar. Aquelas informões em off misturam-se com a informação visual que é completa em si, exatamente por que ela é misteriosa.  

Vocês tiveram algum retorno do presidente Lula após ver os filmes?

Salles – Não tivemos retorno. Na verdade isso é uma pergunta que os jornalistas deviam fazer a ele. Não temos relações com o presidente. Ela terminou com o filme. Você acha que ele gostou do filme?

Coutinho – Antes de responder… você acha que ele viu o filme?

Acho que sim

Salles – E você acha que ele gostou do que viu?

Conheço o Lula muito menos que vocês, mas acho que ele gosta do filme sim, primeiro porque, aparentemente, o filme atinge politica e emocionalmente a todos que o assite, e o Lula é uma pessoa como outra qualquer. Seu nível de emoção inclusive deve ser maior que o do público comum, porque ambos filmes falam de projetos de uma vida inteira.

Salles – Sim, mas podia falar mal. Sobre o filme do Coutinho, não tenho dúvida que tenha agradado. Mas ali é mais fácil porque a atuação de Lula em 79, 80 é inquestionável. Não há dúvida da importância que ele teve ali para a história política do Brasil. Ali há uma luta sem ambiguidade. 

Qual o próximo projeto de vocês?

Salles – Agora estou apenas terminando de produzir o novo filme do Coutinho.

Coutinho – Dá muito azar falar, mas enfim, é um filme chamado “O fim e o Princípio”. Fomos ao interior da Paraíba, alto sertão. Chegamos lá só com informação de guia turísticos e na sequência chegamos numa comunidade onde vivem poucas famílias. Lá são quase todos parentes. Ficamos ali quatro semanas filmando essas pessoas. Tenho que por legendas, o que não é ideal, mas há um jeito diferente de falar, existem muitos idosos, daí as legendas. 

Salles – É um filme que destaca a riqueza das maneiras de fazer documentário. É uma aventura. A razão desse novo filme não é encontrar o lugar, o lugar foi encontrado porque se decidiu fazer o filme. O filme começa sem saber o que vai filmar. E o dispositivo de busca do filme inicia quando a produção começa. Enfim, esse lugar não existiria para o cinema brasileiro, se não houvesse a aposta de tentar encontrar esse lugar já no processo de filmagem. A razão do filme se deve mais ao fascínio pelo dispositivo do que pelo fascinio do conteúdo. O conteúdo vem como consequência do dispositivo.

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