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O melhor curta-metragem gaúcho no 48º Gramado

Apontamentos em construção: A crítica reflete a hierarquia da exibição, que tem no topo obras comerciais

Por Ivonete Pinto | 29.09.2020 (terça-feira)

– acima, imagem do curta-metragem Construção, vencedor da competitiva gaúcha da categoria.

Em 2019, o curta-metragem que venceu a competição nacional da categoria, Só Sei que foi Assim (Giovanna Muzel), no 47º Festival de Cinema de Gramado, recebeu nenhuma crítica por parte dos profissionais filiados às associações de críticos que cobriam o evento. Foi preciso “encomendar” para um crítico um texto para entrar no dossiê promovido anualmente pela Associação de Críticos de Cinema do RS/Accirs.  O filme, que recebeu também  o prêmio de Melhor Filme gaúcho, oferecido pela Assembleia Legislativa do Estado, é uma produção do curso de Cinema e Animação da UFPel (Universidade Federal de Pelotas). Este ano, a universidade bisou o prêmio estadual: Construção, de Leonardo da Rosa, produto do curso de Cinema e Audiovisual da universidade,  recebeu o prêmio de Melhor Filme do “Gauchão”, menção honrosa do júri da Crítica,  Melhor Direção e Melhor Montagem (André Berzagui e Arthur Amaral).   Por tratar-se de um documentário em  live action, possivelmente desperte um pouco mais o  interesse da crítica, mas de qualquer forma, por maior que  venha a ser sua trajetória, dificilmente sua fortuna crítica será expressiva. É assim. A produção crítica reflete a hierarquia da exibição, que tem no topo os lançamentos comerciais dos filmes.

Por isto, e mesmo correndo o risco de não alcançar o distanciamento recomendável, pela  condição de professora do curso citado,  escrevo sobre  Construção com o intuito de contribuir para esta outra ponta da cadeia  cinematográfica, que é a recepção.  É certo que tudo isto poderia estar numa nota de rodapé, entretanto entende-se que este contexto extrafílmico ilumina o cenário da própria conjuntura do formato curta-metragem, de extrema importância como manifestação artística com natureza própria. Construção, pelos seus personagens –  e como desenvolve estes personagens -, poderia ser um longa-metragem. Acontece que ele é enxuto e está na  capacidade de síntese o seu maior valor.

O crítico e apresentador Roger Lerina apresentando “Construção”, foto de Edison Vara/Agência Pressphoto

Mesmo com um enredo minimalista, o  curta de Leonardo da Rosa traz a partir de seu título ao menos três camadas de leitura: a construção do tema (Andréia se desvencilha do marido violento, Andréia  é despejada,  Andréia constrói sua casa com a ajuda dos três filhos ainda crianças); a construção como processo do próprio filme (que vai se erguendo quando a equipe começa a  conversar com a personagem, sem câmera ligada, segue  enquanto  capta as imagens e enquanto é montado), e por fim  a construção como metáfora da vida. Como reação à toda sorte de estrago que temos em volta, de instituições a ideais, Andréia dá uma resposta categórica ao não se deixar abater. Muda-se com os filhos da comunidade em que morava e dá início à construção do sonho da casa própria, com suas mãos de operária da construção civil que um dia foi. Não é um caso isolado. O que não é comum é o cinema dedicar seu esforço de produção a mostrar estes tijolos sendo erguidos, sem romantizar ou heroicizar a personagem.

Nas etapas da edificação do filme, que envolvem consciência, caráter, dignidade e solidariedade,  a equipe deixa sua marca para as gerações futuras que ingressarão na mesma universidade. Primeiro, assumindo que Godard tinha mesmo razão. Perguntado sobre qual seria a importância dos cursos de graduação em cinema, o diretor francês respondeu que nenhuma, exceto pelo fato de que os cursos servem para os jovens encontrarem sua turma.

Leonardo da Rosa seguramente encontrou sua turma.  Produziu Um lugar ao sul  para o colega  Gianluca Cozza dirigir, sobre um imigrante senegalês vivendo em Pelotas (selecionado para vários festivais, entre eles o Visions du Reel na Suíça, 2018). Também produziu o documentário Flamingos (José Pedro Minho Mello, 2019) para o Canal Futura.  Estes e outros trabalhos em andamento, como um filme de arquivo  em codireção com Eloisa Soares, sempre investindo no documental, demonstram que é possível, ainda na faculdade, com a afinidade de interesses entre os colegas, erigir um conjunto de produções consistente. Quando falamos de longas, não hesitamos em chamar isto de obra.

Nesta curta trajetória, um  aspecto que salta aos olhos nestes filmes, e em especial em Construção, é a preocupação ética. A alteridade não é apenas um conceito para fazer bonito, mas é o exercício necessário para estabelecer as relações de confiança. O processo de aproximação da personagem, o respeito com  que  a câmera  filma a ela e seus filhos, sem invasão, a montagem que procura a sensibilidade da personagem, encontrando assim a sensibilidade do filme. São elementos que transparecem na tela e que, muito provavelmente, são traços de caráter da equipe que encontram sintonia nas aulas, nas conversas com os professores, no eco com os autores estudados. Escolas não forjam a honestidade de ninguém; os alunos precisam  cultivar a empatia porque só assim uma teoria, uma provocação docente, pode ter algum efeito. Juliana  Antunes,  de Baronesa (Melhor Filme do festival de Tiradentes em 2017), Arábia, de João Dumans e Affonso Uchoa, é esta linhagem que serve de inspiração. Assim como  Eduardo Coutinho, Leon Hirszman e tantos outros que olharam para personagens do universo operário e construíram um real possível, respeitando suas vozes.

Andréia em cena de “Construção” (Pelotas, RS)

Apropriado dizer, que neste momento político temos a obrigação de fazer a defesa e o elogio do ensino público, mas precisamos também de correção para admitir que não só de dentro do sistema público  podem surgir filmes comprometidos com o nosso tempo, capazes de enfrentar temas e personagens com respeito. O ensino privado, naturalmente, também produz obras engajadas. E então entramos no segundo aspecto da “edificação” anunciada acima,  que é a abordagem que envolve a classe operária.

Mesmo em escolas públicas, sabemos que, ainda, prevalece o olhar da classe média de maioria branca. Leonardo  da Rosa e sua turma, salvo exceções, não fogem deste perfil (Nota: entre as exceções, destaque para Deus, de Vinícius Silva, e O homem  atrás da janela, de Naum  Roberto Gomes). Quando Jean-Claude Bernardet comprou a antipatia dos cinemanovistas por dizer com todas as letras  que eles eram intelectuais da classe média falando pelo povo (“Cineastas e Imagens do Povo”) ele se referia aos cineastas dos anos 1960 e 1970. De lá para cá, as mudanças foram mínimas porque as cotas são, em termos de tempo histórico, muito recentes. Estes indutores das políticas públicas são fundamentais e graças a eles temos as “exceções” fazendo cinema. Para que um filme como Construção seja feito pelos filhos da mulher pobre da periferia, muita mobilização, de todas as classes e cores,  precisa acontecer. Mas não há como ignorar que é  na universidade pública que os filhos de Andréia poderão ter chance de entrar. Claro, se a universidade resistir às tentativas de bombardeio…

Por ora, o procedimento observativo, como o adotado em Construção, parece ser o mais indicado por uma classe média jovem pensante, que quer dar visibilidade ao outro e deve buscar os caminhos mais éticos para fazê-lo. Seja em curtas documentais universitários,  seja em longas com carreira em salas comerciais.

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