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25º É tudo verdade (2020) Wim Wenders, desperado

O amigo alemão revelado

Por Luiz Joaquim | 04.10.2020 (domingo)

Na primeira imagem de Wim Wenders, desperado (Ale., 2020), documentário sobre o cineasta alemão, dirigido por Eric Friedler e Andreas Frege, vemos outro mestre do cinema alemão, o igualmente venerado Werner Herzorg, dando um recado sobre o seu conterrâneo e contemporâneo colega. Ele diz algo como: “Se você tem 18 anos e está começando a trabalhar com cinema, eu diria, veja os filmes de Wim Wenders, seu idiota!”

O documentário pode ser visto gratuitamente hoje, em chance única, a partir das 20h, na sessão em streaming pela plataforma Looke que vai encerrar o 25º É Tudo Verdade (clique aqui para assistir).

A ordem de Herzog (a qual é boa obedecer) é seguida por uma imagem aérea abrindo para o vazio do deserto do Parque Nacional de Big Bend, na fronteira dos EUA com o México. O endereço foi locação de um dos mais icônicos filmes de Wenders, a Palma de Ouro Paris, Texas (1984). No áudio do documentário, a perfurante guitarra de Ry Cooder. Na imagem, um homem solitário caminha em meio ao nada. Não é o Travis (Harry Dean Stanton) da ficção, mas sim seu criador, mimetizando em cena os trejeitos feitos por sua cria 36 anos atrás.

Encontro valioso: Wenders e Herzog em cena de “Desperado”

WW, desperado segue assim ao longo de sua extensão, colocando Wenders dentro de seus próprios filmes. Assumindo a posição dos principais personagens que criou.  O quão fascinante para esse autodeclarado workaholic cineasta poderia ser uma proposta como essa? Bom… o resultado ficou fascinante mesmo para aqueles que ainda conhecem pouco ou quase nada das mais de 50 produções que Wenders, 75 anos, assinou. Até o momento.

Agora… se o espectador tiver um mínimo de intimidade com a sua filmografia, o documentário de Friedler e Frege é um deleite do início ao fim. E não apenas por vermos Wenders se divertindo ao assumir o lugar de Travis, ou de Damiel (Bruno Ganz) em Asas do desejo (1987, melhor direção em Cannes), ou Howard (Sam Shepard) em Estrela solitária (2005), mas realmente revelar um tantinho da metodologia criativa desse artista que chegou a pensar a ser médico, artista plástico e terminou por abraçar aquela profissão pela qual ele pode ser quem quiser.

Não é à toa que WW, desperado gira em torno do Paris, Texas – até os créditos iniciais do doc. rementem ao da ficção. Isso porque a Palma de Ouro de Wenders expandiu o seu alcance ao mundo como até então o cineasta não alcançava e, ainda, aquele filme talvez tenha sido a mais exitosa experiência do diretor em conduzir a produção de um longa-metragem de ficção sem roteiro. Sim, sem roteiro prévio.

A diretora de arte e figurinista Judy Shrewsbury (O estado das coisas, 1982) conta que Wenders datilografava de madrugada, em seu quarto de hotel, os diálogos do dia posterior e os jogava por baixo da porta da equipe às 3h da manhã, com uma agenda de trabalho que iniciava às 6h.

Como bem diz um de seus atores, Patrick Bauchau (O estado das coisas), Wenders é um ‘desperado’, que na falta de uma melhor tradução, ele (ou melhor, a tradução brasileira) usa a palavra ‘incauto’, ou seja, um despreocupado com o resultado. Que “se joga em queda livre [sem proteção] e assim se aproxima do alvo”. Alguns erram, mas quando acertam…

Sobre tal metodologia de Wenders, o doc. ainda registra também o lindo complemento da cantora Patti Smith (Até o fim do mundo, 1991): “Só esqueceram de dizer que se o paraquedas falhar, Wenders abres suas asas e chega no chão com segurança”.

Nesse sentido, é muito valioso o que a fotógrafa e esposa do cineasta, Donata Wenders, desdobra a esse respeito. Ela conta que o marido conseguiu tocar seus projetos por essa dinâmica até Asas do desejo e, depois disso, tentou se adaptar às exigências de detalhamento do enredo de um novo projeto aos investidores e ser obrigado a segui-lo à risca. O caso de Hammett: Mistério em Chinatown, 1982, produzido por Copolla é ilustrativo aqui.

Daí a crescente predileção do diretor em realizar documentários, pelos quais a liberdade intuitiva pode ser mais compreendida pelos investidores e, para Wenders, gerar um trabalho mais artisticamente recompensador.

É, igualmente, de Donata a fala sobre o marido ser um incauto também nos negócios. “Ele nunca guardou dinheiro”. Atenção para a história de O amigo americano (1977), seu primeiro filme a obter interesse do mercado exterior (a partir da exposição em Cannes). Wenders vendeu os direitos de exibição para a Espanha por US$ 10 mil. Uma ninharia em vista do lucro dado pelo filme que ficou um ano e meio em cartaz e foi visto por um milhão de espectadores, apenas naquele país.

Talvez WW: desperado ajude àqueles que perderam a fé na recente filmografia ficcional feita por Wenders a perceberam algo que não percebiam,  e compreendam também o porquê desse homem ainda criar tão bons documentários. Citemos os três mais populares: Bueno vista social club; Pina; O sal da terra (1999, 2011 e 2014, respectivamente, com todos eles tendo sido indicados ao Oscar).

A propósito, a última cria de Wenders é um documentário, Papa Francisco: Um homem de palavra (2018) e está disponível no Netflix. Veja-o e tire suas conclusões mas, antes, aproveite a oportunidade de assistir hoje Wim Wenders: Desperado.

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