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Críticas

Carro Rei (texto 2)

Se meu Uno falasse

Por Luiz Joaquim | 25.09.2021 (sábado)

É valioso para o cinema brasileiro o que faz Carro Rei (Bra., 2021), de Renata Pinheiro, ao mesclar o contexto sócio-político do mercado de consumo (e nada melhor do que os automóveis para ilustrar isso), com as possibilidades da fantasia fabulosa que um argumento cinematográfico pode proporcionar.

E essa distinção entre o mundo concreto das coisas e o que há de fabular na história do jovem Uno (Luciano Pedro Jr.), que consegue se comunicar com automóveis, surge aqui de maneira bastante marcada e, talvez, não tão bem fundida, prejudicando a fluidez narrativa de Carro Rei.

Como argumento, temos o protagonista Uno, que ganhou esse nome por ter nascido a caminho da maternidade, no banco de trás do Fiat de seu pai taxista. Anos depois, no município de Caruaru (PE), encontramos um Uno adolescente e o seu pai como dono de uma pequena frota de táxis.

Mas o negócio passa a ser ameaçado a partir de uma nova lei que proíbe a circulação com carros com mais de 15 anos de fabricação. É nesse contexto que o tio de Uno, Zé Macaco (Matheus Nachtergaele), que vive isolado num ferro-velho, ganha espaço na trama e, como se diz no meio automobilístico, “customiza” a frota, criando novos modelos cuja tecnologia conta com a própria consciência dos carros. Uma autoconsciência que, silenciosamente, pretende dar partida a uma revolução das máquinas contra o homem.

Ainda que não seja inovador na história do cinema (Christine: O carro assassino, 1983, de John Carpenter, vem à mente, mas isso nem é tão importante assim), Carro Rei nos apresenta um baita de um argumento cinematográfico, sendo de extremo valor para o universo do cinema fantástico feito no Brasil.

E, aqui, Renata Pinheiro, celebrada ao longo da carreira pelo seu incrível trabalho como diretora de arte (e também pelo crescente êxito como diretora cinematográfica), aproveita como pode as nuances desse argumento para criar, junto a diretora de arte Karen Araújo, uma ambiência envolvente para essa fabulação. Com partícular destaque para o ferro velho de Zé Macaco e para indumentária da performer Mercedes (o ator transgênero, não binário, Jules Elting, da Alemanha, visto em O ornitólogo).

Clara Pinheiro e Luciano Pedro Jr. em cena de “Carro Rei”

Entretanto, é na junção das peças, por assim, dizer, que Carro rei parece tropeçar. Seja por um ou outro diálogo que parece soar didático – como a conversa entre o adolescente Uno e a amiga Amora (Clara Pinheiro) sobre o mérito e a ética, ou não, de uma instituição que presta um serviço social aceitar a doação de um carro (símbolo consumista/capitalista) –, seja por algumas performances que chamam a atenção um tanto mais do que o necessário. Não como crédito de uma equilibrada atuação, mas pelo que há de excedente nela.

Tudo bem que, numa história como a que Carro Rei pretende contar, o exagero caiba em todos os espaços, mas não se trata disso. Trata-se do desvio da atenção do espectador para o que não interessa na atuação.

Por exemplo, Matheus Nachtergaele, sempre (e merecidamente) reconhecido como um dos melhores atores de sua geração no Brasil, nos apresenta um Zé Macaco tão carregado de trejeitos corporais que remetem imediatamente a Cornelius, de O planeta dos macacos (1968). Isto que poderia ser aqui uma sugestão sussurrada (e bem vinda), tornou-se um berro. O que é uma pena.

Carro Rei ainda não tem data de estreia no circuito comercial. Será distribuído pela Boulevard Filmes e teve seu lançamento no mundo na 50ª edição do Festival de Roterdã, em fevereiro (leia crítica de Marcelo Ikeda aqui). O filme já percorreu outras mostras pelo mundo e, por aqui, pelo Brasil, conquistou o Kikito de melhor filme no 49º Festival de Cinema de Gramado (além de trilha musical, direção de arte e desenho de som), tendo também encerrado o 12º CineFantasy no último domingo (19).

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