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Críticas

What Do We See When We Look at The Sky

Amor duas vezes

Por Pedro Azevedo Moreira | 10.01.2022 (segunda-feira)

é como edificar uma cidade

por mais que se planeje

sempre haverá

raízes de árvores que crescem

quebrando a calçada

um cachorro que toma para si a porta de uma igreja

uma esquina que já não será a mesma

depois que nela duas pessoas se encontram.

(MARQUES, Ana Martins, 2021) – (1)

 

Há uma paisagem evocada por Volapuque, poesia de Ana Martins Marques citada acima, que traduz um pouco do sentimento que tive ao assistir What do we see when we look at the sky (disponível por streaming pela Mubi) . No seu filme anterior, intitulado May the summer never come again, o realizador georgiano Alexandre Koberidze joga tacitamente com um regime de sub visualidade, imprimindo uma série de imagens de baixíssima resolução (captadas digitalmente por um telefone celular) para narrar uma história de amor repleta de lacunas, opacidades e invisibilidades. Neste seu mais recente trabalho, no entanto, a abordagem parece ser radicalmente distinta (apesar de dotada do mesmo senso de humor ácido): atento aos mínimos detalhes, ele encontra beleza nos gestos mais banais, interessado em explorar com nitidez e transparência a poesia de cada pequeno acontecimento na vida cotidiana de uma pequena cidade na Geórgia.

Como na poesia de Marques, no filme um casal se esbarra numa esquina que nunca mais será a mesma depois que nela os dois se encontram. A trama proposta por Koberidze parte do clichê do amor à primeira vista para rapidamente se converter numa narrativa fantástica onde objetos inanimados ganham agência e a magia existe para contaminar o encontro de dois jovens apaixonados. Após se esbarrarem pela segunda vez no mesmo dia (e na mesma esquina!), a farmacêutica Lisa e o jogador de futebol Giorgi resolvem marcar um encontro, mas são surpreendidos por uma maldição lançada por um olho maligno que faz com que os dois mudem de aparência na manhã seguinte. Além de acordarem fisicamente diferentes, ambos também devem abdicar dos seus maiores talentos: Lisa já não lembra de mais nada do que estudara na faculdade de Farmácia e Giorgi não pode mais jogar futebol.

Cena de “What do we see when we look at the sky”

O que se sucede a partir daí é uma sequência de acontecimentos banais e coincidências que, em puro estado de graça, aproximam Lisa e Giorgi nas suas novas formas. Ainda impossibilitados de se reconhecerem e na ansiedade do reencontro, ambos passam a trabalhar para o mesmo chefe: ela como sorveteira e ele como fiscal de um desafio de barra.

Ambientado na pequena Kutaisi, na Geórgia, o filme fabula os espaços urbanos e rurais da cidade em diversas sequências que se alternam entre a grandiosidade de planos gerais, apresentando paisagens absolutamente exuberantes, e a intimidade de planos detalhe, que realçam as delicadezas dos espaços e dos corpos. Nas repetidas e circulares travessias das pontes que atravessam as torrentes do rio de águas agitadas que rasga Kutaisi, somos convocados a testemunhar as particularidades da cidade nos seus mais minuciosos detalhes. Trata-se de encontrar graça no ordinário. No filme, a comunidade local está toda mobilizada pela copa do mundo de futebol. A torcida de Giorgi é pela Argentina e pelo camisa 10 da seleção, Lionel Messi. No filme, os cachorros de Kutaisi tem nomes de jogadores famosos e também assistem às partidas nas televisões dos bares e restaurantes. O narrador da história, onisciente, nos surpreende com uma notícia inesperada a certa altura da projeção: a Argentina vence aquela edição da copa do mundo com um placar elástico de 3×1. No universo criado por Koberidze, faz-se justiça poética e a Argentina não perde a final da copa para a Alemanha por 1×0, com o fatídico gol de Mario Götze na prorrogação, como aconteceu em 2014.

Mas o fantástico de What do we see when we look at the sky não reside apenas na maldição que muda a aparência dos protagonistas, nos objetos inanimados que ganham agência e na rede complexa de comunicação entre os cães fãs de futebol. O filme abraça o realismo mágico também quando apresenta um casal de diretores de cinema que resolvem filmar retratos íntimos de casais apaixonados ao longo de vários anos espaçados, utilizando-se de um dispositivo de captura de imagem analógica em película 16mm. Lisa e Giorgi, que apesar de já estarem bastante familiarizados com os seus novos corpos a esta altura da narrativa, ainda não se enquadram como um casal, pois seguem ansiando pelo reencontro nas suas formas originais. Ainda assim, os dois acabam sendo persuadidos a participarem do filme.

Cena de “What do we see when we look at the sky”

A câmera que filma em 16mm guarda, com efeito, uma certa dose de mágica a quem por ela é registrado, pois qual não será a nossa surpresa quando, ao vermos os negativos revelados, descobrimos as versões originais de Lisa e Giorgi na tela; tendo os dois estado ali o tempo todo, lado a lado, numa zona além da imaginação que só pôde ser revelada aos olhos por intermédio da magia do cinema. Aqui, Koberidze assume o risco de cair na pieguice, mas nos presenteia com um dos momentos mais bonitos do cinema em 2021.

O narrador de What do we see when we look at the sky fala sobre os pequenos milagres cotidianos que acontecem a nossa volta sem que sequer os percebamos na maior parte das vezes. O encontro de Lisa e Giorgi é só mais um milagre entre os tantos que passam batidos pelos nossos olhos diante do excesso de sinal e ruído que atravessam a experiência das pequenas e grandes cidades. A poética do filme, que é de um rigor primoroso na construção das imagens e dos sons que dão corpo a Kutaisi, nos convoca a reeducar o olhar e a acreditar que os recomeços, incertos por natureza, podem recompensar quando estamos verdadeiramente abertos à potência dos encontros. O mundo está em constante mutação e nós estamos mudando com ele, basta parar pra olhar ao redor.

(1) excerto retirado do livro Risque esta palavra (2021)

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