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Críticas

Guerra Civil

Jornalistas no centro da ação

Por Yuri Lins | 17.04.2024 (quarta-feira)

O burburinho sobre Guerra civil (EUA, 2024) sugere que o filme tem uma visão profética, antecipando conflitos próximos ao traduzir as obviedades do noticiário político. Com os Estados Unidos entre a invasão do Capitólio em janeiro de 2021 e a possível reeleição de Donald Trump em 2024, o cenário oferece terreno para especular sobre uma escalada de tensão que desembocaria em uma nova guerra civil. O filme atrairia, assim, um público que busca um sentido de agitação ou consolo para as suas angústias. No entanto, não espere profundidade sobre os conflitos atuais; o diretor Alex Garland (Ex Machina, Men – Faces do Medo) está mais interessado na reflexão sobre o jornalismo de guerra e quem assume essa responsabilidade.

A perspectiva de Alex Garland sobre a guerra civil retrata uma nação imersa em desorientação generalizada. O governo está à beira do colapso, com Texas e Califórnia unidos na tentativa de destituir o Presidente (Nick Offerman). Neste caos, uma miríade de grupos, desde milícias até facções maoístas e mercenários, operam de acordo com seus próprios interesses. Há, também, uma parte da população que opta por ignorar o conflito, preferindo manter-se à margem da turbulência, numa firme crença na segurança proporcionada pela ignorância.

Uma das principais forças de ‘Guerra Civil’ reside em seus protagonistas.

Dentro desse contexto turbulento, um grupo de jornalistas, composto por Lee (Kirsten Dunst), Joel (Wagner Moura), o experiente Sammy (Stephen McKinley Henderson) e a novata Jessie (Cailee Spaeny), decide embarcar numa jornada rumo a Washington. Seu objetivo é conseguir a última entrevista com o presidente antes de sua deposição. Essa decisão carrega consigo um profundo sentido de dever jornalístico em registrar e informar sobre os acontecimentos, mesmo que isso envolva riscos.

Em “Guerra Civil”, a escolha é de não explorar as origens do conflito ou a natureza dos diversos grupos envolvidos. Em vez disso, o filme adota a perspectiva dos jornalistas, que assumem o papel de observadores imparciais e informantes dos fatos concretos. Embora os personagens defendam essa abordagem como fundamental para manter a imparcialidade jornalística, ela também serve como um dispositivo para que Garland evite posicionar seu filme em algum espectro ideológico específico.

Por um lado, essa escolha permite uma maior aceitação pelo grande público, já que o filme evita expressar diretamente um viés conservador ou liberal; em uma época de imensa polarização, essa estratégia de “ficar no meio” é uma forma de autopreservação. Torna-se óbvio como  essa decisão compromete a capacidade do filme de oferecer uma visão mais criativa e crítica dos Estados Unidos. O conflito retratado no filme poderia ser replicado em qualquer outro lugar sem qualquer descaracterização, pois ele carece de uma materialidade histórica, social e política mais profunda além do aspecto anedótico com o qual opta por trabalhar. Como resultado, a capacidade da ficção de criar universos, com suas próprias regras e mitologias, a partir da observação da realidade – algo que sempre foi a essência da melhor arte especulativa – acaba sendo demasiadamente empobrecida.

Os Estados Unidos estão imersos em completa desorientação.

Nas entrevistas e materiais de divulgação de Guerra civil, a equipe frequentemente argumenta que a falta de um viés explícito permite ao espectador encontrar diversos significados na obra. No entanto, essa abordagem de não adesão é, por si só, uma posição ideológica. Garland parece confortável em sua posição isenta, adotando a perspectiva de seus protagonistas, que, por natureza de seu ofício, precisam navegar pela complexidade do mundo sem se fixar totalmente. Essa postura funciona como uma blindagem, impedindo-o de adentrar profundamente nas questões levantadas.

Do ponto de vista crítico, Alex Garland concentra-se nas contradições do jornalismo. Ele sugere que, em situações violentas como uma guerra, no calor do conflito, a reflexão ética sobre a natureza da fotografia é deixada de lado em favor da urgência de documentar. Lee personifica essa abordagem tecnicista, agindo tal qual  um autômato que registra os eventos de forma quase irreflexiva. Diante do horror, a testemunha ocular que possui uma câmera deve angariar as provas do crime, deixando questionamentos para serem feitos pelos críticos posteriormente. 

Em ‘Guerra Civil’, existe a camada do ofício que precisa ser realizado, mas também há a dimensão do desejo.

Há também a escolha de pensar a guerra não apenas como um conflito ideológico ou coletivo, mas também como um evento impulsionado pelo desejo. A abjeção da guerra gera uma espécie de libido, levando os envolvidos a buscar a satisfação. Não apenas os soldados ou os civis que empunham armas e matam com prazer, mas também os jornalistas, com sua ética na função de registrar e informar, também são influenciados por essa dimensão mobilizadora do prazer.  O filme leva essa consciência a um nível literal: em cenas explícitas,  mostra-se corpos mutilados ou imolados em câmera lenta, acompanhados por uma trilha sonora dissonante, como forma de destacar a natureza libidinosa desse conflito. A literalidade, contudo, simplifica o que já estava expresso de forma mais sutil nos fundamentos da obra.

Jessie, a fotógrafa novata, parece buscar a beleza no horror ao preferir a fotografia em película e em preto e branco. Joel, por sua vez, é o típico viciado em adrenalina, encontrando nos campos de batalha a energia necessária para satisfazer suas necessidades. Lee e Sammy, funcionam como contrapontos, ambos já consumidos pelo desejo, movem-se em suas próprias ruínas. Enquanto Lee age como um autômato do registro, dessensibilizada e consumida pelo ofício, Sammy parece ter vivenciado todas as fases representadas nas personalidades arquetípicas dos outros membros. Agora, assume o papel vital de ser a voz da ponderação em uma missão suicida.

Com ótimas cenas de ação, ‘Guerra Civil’ nunca perde de vista o fator humano no centro do conflito.

O que de melhor se pode dizer sobre Guerra civil é a experiência atmosférica e cinética que oferece. Garland compreende a importância da calma em meio à turbulência, da estagnação em meio à velocidade e do silêncio que antecede a explosão. Sua guerra não é apenas a cacofonia da violência, mas também inclui momentos de tranquilidade que gradualmente são infectados pela tensão até serem totalmente consumidos por ela. Mesmo quando o conflito atinge proporções megalomaníacas, o filme mantém um eixo inteligível da ação, evitando o amontoado ilógico e dispersivo de imagens e sons. 

A coesão do filme se mantém porque Garland mantém não perde de vista o elemento humano no cerne do conflito. A pressão da guerra obriga aqueles que se dessensibilizam a encontrar um novo sentido de humanidade, enquanto os que ainda mantêm alguma inocência a perdem completamente diante do horror, endurecendo-se para sobreviver nesse mundo de violência. Guerra civil pode até ser insuficiente politicamente e funcionar principalmente como um filme de ação, mas o que permanece após a sessão são os olhares petrificados de Lee, gradualmente iluminando-se, o humor reconfortante de Joel, a simplicidade de Jessie e a voz calma e dolorosa de Sammy. É um filme que, apesar de suas fragilidades, possibilita uma empatia que não ignora ou nega as contradições do indivíduo diante do duro ato de fazer o que precisa ser feito.

 

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