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Críticas

No Outro Encontro Você

Cinema de gentrificação

Por Yuri Lins | 04.10.2022 (terça-feira)

Fiz suco verde, olha: limão, gengibre, couve, maçã…

Nutella, se você existe, apareça agora!

(Diálogo entre os personagens Michele e Marcelo)

Ao final da sessão de No outro encontro você (Bra., 2022), resta a dúvida: essa é uma obra  que prega peças em seu espectador? Será que este retrato de um grupo de amigos pequeno-burgueses,  na verdade, é uma crítica à elite através da exposição e do esgarçamento de toda a superficialidade  de seus dramas ou realmente estamos reféns, durante uma hora e meia, da platitude mais coerente  e sincera com os anseios e vivências de seu realizador? Tudo o que se desenvolve no interior deste filme gera uma incredulidade diante de suas operações, sobrando a esperança de que ele seja, na verdade,  uma grande performance de humor. Caso contrário, como pode ser possível tamanha geringonça? 

Na trama, quatro amigos se reúnem em um sítio para passar o feriado de Ano Novo. Surgem  seus dilemas: Bia (Carol Tilkian) é uma artista plástica que, tendo feito residências artísticas  internacionais, está com bloqueio criativo e em crise; Marcelo (Bruno Autran) é um típico  playboy que tenta ganhar dinheiro fazendo investimentos em negócios, mas que sempre precisa recorrer a  seu pai; Rodrigo (Geraldo Rodrigues) possui algum bom trabalho, mas é viciado em  joguinho de poker online; Michele (Júlia Lanina), que forma um casal com Rodrigo, está insatisfeita  com o casamento e mantém um caso extraconjugal com um amigo. Os dias passam e eles entram em  conflitos até que se reconciliam.  

Partindo da premissa que tudo o que é exposto é a sua verdadeira intenção, sem a crítica via caricatura, o que existe é uma sucessão dos dramas da classe alta, porém sem que haja qualquer adensamento mais sofisticado. Todo o filme se funda numa concentração de sua  ação ao espaço restrito de uma casa, o que determinará uma encenação baseada nos diálogos entre as  personagens. Contudo, se há um desejo por naturalismo nas atuações, tem-se a sensação de que  os atores não estão fazendo outra coisa se não ler páginas de roteiro diante da câmera, mas sem nunca subir um degrau acima na construção das personagens. É como se toda a encenação estivesse restrita às rubricas do roteiro (“Bia olha triste para a janela”; “Marcelo xinga alto”), sem nenhuma  transposição criativa para o meio cinematográfico, de maneira que o que se assiste fosse como um eterno e enfadonho teste de elenco para atores de primeira viagem.  

Não que os atores sejam ruins ou não poderiam acrescentar mais. O grande problema de No  outro encontro você é a incapacidade de seu realizador, André Bushatsky, de lidar com o seu material.  Não há qualquer pensamento na forma como ele constrói seu filme, a câmera não acrescenta nada a não  ser captar a leitura de um texto horroroso. Em sua montagem não há qualquer traço de dialética, de  revelação, de pensamento sobre o processo. Ele é incapaz de sondar a intimidade de seu drama, de  encontrar aquela dimensão mais abstrata e complexa da condição humana através do gesto de  acompanhar seus personagens habitando o mundo, (mise-en-scène, enfim.). A não ser que, de tão  complexa e arrojada, esta dimensão só fique acessível a quem participa da mesma classe social  representada — novamente, fica a dúvida se o que se vê é uma caricatura ou se realmente se está diante  de uma obra que sente profundamente o drama de um copo de suco detox enquanto o que se deseja é poder comer nutella. 

Durante toda a sessão, uma recordação vem à mente: quando vivo, o realizador Manoel de  Oliveira deu resposta certeira ao também realizador Pedro Costa quando este indagou que ele, Manoel,  filmava os ricos, ao passo que ele, Costa, filmava os pobres. Eis que Oliveira responde que o que filmava era a alma dos ricos e que Costa filmava a alma dos pobres. O grande  problema do filme de André Bushatsky não passa pela sua vontade de habitar e expor as questões de  sua elite, mas sim ser incapaz de mostrar algo que não seja a expiação superficial do drama, de mostrar  nada além do que já se conhece e que não seja o regozijo de seu próprio umbigo. Filme sem alma, sem  mistério, incompetente até para ser chamado de leviano. 

Não havendo qualquer mise-en-scène, o que resta é um acúmulo de tudo o que é inflado no cinema: há os planos aéreos feitos por drone, a música abarrotando as imagens frouxas para dar um tom  solene; ou quando embala de forma agitada, os corpos jovens, brancos e belos, no alto de seu cotidiano  privilegiado. Há, também, os momentos de “poesia poética”, de “beleza bela”, com as personagens  “sentindo sentimentos” na redundância da cena. Porém, o que há de pior é esta sua moral de biscoito da  sorte, essa mensagem de empatia de fachada sobre reconhecimento no outro, construída com a afetação  própria de uma campanha de marketing. Cinema de gentrificação, tudo parece vir diretamente de  qualquer publicidade de uma corretora de investimentos da Faria Lima.  

Ao final, fica-se com a impressão de que No outro encontro você é uma esquete do Porta dos  Fundos que se acha um filme de Ingmar Bergman.  A única coisa  realmente interessante nele é a sua trilha sonora assinada por André Abujamra, que mesmo não casando  com absolutamente nada do filme, ao menos pode ser apreciada posteriormente. 

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