
Apocalipse nos Trópicos
Mais Voltaire e menos Apocalipse
Por Ivonete Pinto | 16.07.2025 (quarta-feira)

Diz a lenda que um dos produtores de O Desprezo, Carlo Ponti, queria que Godard explorasse a estrela do filme, Brigitte Bardot, como veio ao mundo. Deveria ter alguma cena de sexo. Godard então criou a cena de abertura, com Bardot e o marido (Michel Piccoli) na cama, ela nua, de costas, enumerando as partes do seu corpo, numa conversa burocrática, que dessexualiza a cena. Resolvido. A partir dali o filme poderia se ocupar do que de fato importava.
Pois com Apocalipse nos trópicos e esse artigo, podemos usar o mesmo método: a voz de Petra Costa continua frágil, passando uma vulnerabilidade em dissonância com o que os temas propõem. E como ela insiste em narrar seus próprios filmes fazendo uso desta voz, isto passa a ser uma questão. Acontece que chegando no seu quarto longa, o corpus de sua filmografia vai ficando mais concreto e percebemos que, se fosse literatura, estaria mais para a crônica. Como crônica, a subjetividade de quem conta a história é o que impera e, portanto, há uma coerência interna nesta opção da diretora. Faz sentido ela mesma narrar os acontecimentos montados a partir do seu ponto de vista, em uma obra absolutamente autoral. Uma moldagem melhor da voz, da pronúncia e do ritmo, não viriam mal, mas vamos aos fatos que realmente importam.
Apocalipse nos trópicos é o filme mais maduro da diretora É onde investiu um conhecimento específico adquirido para o projeto: estudou a Bíblia para poder entrevistar na mesma língua os evangélicos, atores sociais do documentário. Silas Malafaia, principalmente. Ao confrontar os argumentos dele, Petra Costa se iguala em conhecimento, com a vantagem de não ter a crença a obliterar sua perspectiva, que é racional.
O que o documentário deixa claro, e quem acompanha o mínimo do noticiário nos últimos anos também percebe, é que figuras como Malafaia jogam com a crença dos outros. Apelam ao irracional dos outros. Eles próprios guiam-se por um projeto de poder. Querem tomar o s três poderes, o País.

A teologia de Malafaia é um projeto de Estado.
O documentário de Petra Costa nos coloca num embretamento. Por uma lado, somos convidados a aceitar que as religiões neopentecostais no Brasil ocupam o espaço que deveria ser do Estado; por outro, torna vidente as consequências maléficas que seus líderes representam. Querem o poder pura e simplesmente, assim como os fundamentalistas islâmicos num pais como o Irã. A religião é apenas a ferramenta e o método.
Então, como brasileiros suscetíveis à guerra pseudo santa, o que pensar? Quem é esta gente louca capaz de dar todo seu salário aos charlatões que ocupam cada vez mais assentos no poder judiciário (no Supremo á um bem radical) e no Congresso? Só a Frente Parlamentar Evangélica possui 228 membros. Cada um com um discurso mais violento que outro; todos disputando quem tem a visão mais estapafúrdia, para assim ganharem maior projeção.
Estrutura – O filme de Petra Costa estrutura-se por capítulos ligados aos livros do Antigo Testamento. O capítulo que dá título ao documentário, é defendido como o mais ilustrativo do momento atual. E a diretora faz um trabalho de pesquisa, buscando a origem da guerra do bem contra o mal, da violência e inversão de valores espirituais: a partir de um momento, passou a ser aceitável e legítimo ganhar dinheiro. Ser conservador aliava-se ao ser capitalista. O evangelista Billy Graham tem destaque no filme, com sua pregação, sua vinda ao Brasil na década de 1970 (encheu o estádio Maracanã para ouvir seus vitupérios).
Para dar sossego às nossas inquietudes filosóficas e aceitar os que creem, ateus e agnósticos tapam o nariz e tentam ser tolerantes. Parece o caso de Petra Costa. Ela faz diversas citações no filme, mostra dezenas de pinturas ligadas ao apocalipse bíblico, mas não chega a citar Voltaire. “Tratado sobre a tolerância”, segundo Jorge Coli, que escreveu a introdução da edição de 2024, fala no aumento de vendas da obra após o ataque ao jornal Charlie Hebdo, em Paris. Diz a razão que a intolerância para com o, no caso, islamismo, deve ser combatida.
Voltaire não escreveu nestes termos em 1763, naturalmente. Ele falava, no contexto do Iluminismo, em favor da razão, contra o absolutismo religioso. E que o fanatismo, doença da intolerância religiosa, é que leva às guerras. De onde se conclui que esse pessoal do Malafaia precisa ler mais Voltaire e menos Apocalipse, considerando que eles são os intolerantes. E para não dizer que Petra Costa foi tendenciosa, ela também entrevista pastores que não fundamentalistas. Talvez estes tenham lido Voltaire.

A Bíblia virou roteiro de governo para quem nunca separou fé de dominação.
Imagens – De qualquer forma, por mais que nos esgueiremos em ser tolerantes com os intolerantes, se não enxergarmos os líderes dessas religiões como meros alpinistas sociais quando em início de carreira, não vamos sair deste brete. Talvez Petra Costa considere esta visão, essencialmente ligada ao dinheiro, um reducionismo, e a tenha dispensado do filme. Afinal, todos conhecem, por cobertura jornalística que seja, os impérios construídos com os donativos. E os que se locupletam são os pastores, nunca os obreiros. Costa tenta expor a complexidade das ambições dos líderes e como isto funcionou com Malafaia-Bolsonaro. Mas como é um filme que faz pensar a partir de suas teses, podemos construir ainda outras teses no entorno.
A lamentar que Apocalipse nos trópicos não tenha deixado mais as imagens falarem por si. Os momentos de silêncio, ou quando os personagens se revelavam por eles mesmos, fizeram o filme crescer. A cena de Sérgio Moro sendo recebido em uma plateia como o novo herói da humanidade é um exemplo de imagem perfeita. A cara de regozijo daquele homem é impressionante. Ele se desnuda ali como alguém que colocaria a vaidade acima de tudo. E o fez.
Não que o texto da narração seja supérfluo ou dispensável. Ele faz uma costura coesa, analisando o contexto, a cronologia dos acontecimentos, os desdobramentos, principalmente, a retomada das circunstâncias. Se quem acompanhou tudo, desde o golpe da Dilma, a prisão de Lula, etc, precisa refrescar a memória, imagine-se uma audiência estrangeira, que desconhece os fatos. E como os documentários de Costa têm cada vez mais um público fora do Brasil, a narração tem sua importância. É tarefa difícil equilibrar o desejo de ser compreendida por espectadores externos, somada à ambição de realizar um documentário reflexivo, que deixa o espectador tirar suas conclusões a partir das imagens e dos silêncios.
Entre pequenas objeções e grandes acertos, deve-se admitir que Petra Costa tem demonstrado que sabe enfrentar desafios. Abordou o suicídio da irmã em Elena (2012), a gravidez de uma atriz em Olmo e a Gaivota (2015) , o sistema político em Democracia em Vertigem (2019) e no atual trabalho. Nestes dois últimos, analisando com perspectiva histórica nossa frágil democracia. E são poucas as diretoras mulheres que adentram no universo masculino da política. Costa, Maria Augusta Ramos e Lúcia Murat são os nomes que se voltam com centralidade e coragem para esta área. E também uma certa criatividade na forma dos filmes, numa posição à esquerda, necessária para se contrapor ao lamaçal de insanidade que a direita representa.

Petra Costa filma o apocalipse como quem investiga uma engrenagem.
Humanização de risco – Em Santa Cruz (2000) João Moreira Salle humaniza os evangélicos. Petra Costa insere no filme trechos de fiéis, o que pensam, suas agruras, suas ideologias, como que para demonstrar a tese de Salles, de que a religião (no caso, as neopentecostais) tem um propósito e seria justificada. A religião chega para dar assistência para quem não tem nada. A narração da diretora confirma esse entendimento e, para corroborar, acrescenta até uma fala de Lula. Ele sustenta que o socialismo não deu certo porque tentou sufocar os valores religiosos. Para Lula, a religião oferece uma saída aos problemas e um sentido para a vida. Poderíamos contrapor que, ao render-se aos valores religiosos, rende-se também à irracionalidade, que por sua vez abre caminho para os malafaias. E dá-lhe Voltaire para tolerar.
As religiões sempre estiveram ligadas ao poder. Mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Petra Costa, diferente de João Moreira Salles, tem como objeto um cenário político específico em sua relação com o avanço do poder dos evangélicos. O deputado Sóstenes Cavalcante (o mesmo que propôs – e aprovou – moção de louvor a Trump após o tarifaço ao Brasil), chega a contar quantas fileiras os evangélicos agora ocupam no Congresso. E Costa elege a figura de Silas Malafaia para representar este poder crescente, com ingerência direta nas ações da família-máfia Bolsonaro. Talvez o pastor creia que tem uma influência maior do que tem. Petra Costa acredita no que Malafaia acredita. Prova disso é que ela faz questão de repetir uma imagem, que funciona como imagem-síntese: Bolsonaro no palanque dizendo algo que o pastor o treinou para dizer. Na leitura labial, podemos ver o pastor proferindo em sintonia as mesmas palavras.
Isto é sustentar, pela repetição, a tese que o filme carrega. Não precisaria comentário da narradora, mas a repetição da imagem em câmera lenta se mostra necessária mesmo para aquele espectador atento, já que o pastor não estava em primeiro plano. Um procedimento à la Chris Marker em Carta da Sibéria (1958), que eleva o cinema, ao menos que eleva o documentário à condição de filme-ensaio. Não é pouco.
Ao fim e ao cabo, concluímos, mesmo com todas as evidências do poder em torno dos pastores, somos governados, mesmo, é pela Faria Lima. José Padilha já expôs suas teses relacionando o poder de Brasília com o tráfico e a violência da polícia. Em Apocalipse nos trópicos e nos filmes de Padilha, são os valores do capitalismo que dão as cartas. Agora e no fim dos tempos, Glória a Deu$.
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