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Festivais

Roterdã, IFFR (2020) – O Ano do Descobrimento

A Espanha das últimas décadas em documentário revisionista

Por Marcelo Ikeda | 28.01.2020 (terça-feira)

ROTERDÃ (HOL.) – Nas conversas de corredor entre os críticos credenciados e até mesmo entre membros da organização do evento, O ano do descobrimento é um dos filmes mais comentados desta edição do Festival de Roterdã. A começar por sua duração de mais de 200 minutos, tornando-o o filme mais longo já exibido na competição principal. Mas, claro, não só por isso.

O primeiro longa de Carrasco (El futuro) já havia sido bem elogiado quando exibido em Roterdã em 2014. O filme reflete sobre as heranças do governo socialista de Felipe Gonzalez a partir de uma festa realizada às vésperas da eleição.

O ano do descobrimento é um desdobramento dessa pesquisa, utilizando alguns recursos em comum do primeiro filme mas os deslocando.

Sua premissa é realizar um ambicioso panorama político das transformações da Espanha nas últimas décadas, a partir de um contraponto. Em 1992, a Espanha era noticiada como um país de grande prosperidade, na iminência de sediar eventos midiáticos globais, como as Olimpíadas de Barcelona e a Exposição Universal de Sevilha. No entanto, Carrasco pretende mostrar que, por trás dessa imagem de euforia, o país vivia momentos extremamente turbulentos – como a invasão do parlamento local em Cartagena.

Carrasco utiliza o levante de Cartagena como mote para uma reavaliação do que levou as pessoas a se rebelarem explicitamente contra as injustiças do sistema. Percebemos, então, as profundas transformações da Espanha, na transição entre a ditadura e a democracia, com a deterioração das relações de trabalho, culminando no fechamento de várias indústrias locais.

O ano do descobrimento é um documentário sobre essas questões mas Carrasco utiliza uma estratégia curiosa, que ressoa seu primeiro filme – reúne um conjunto de pessoas num café (num bar) em Cartagena para desenvolver conversas sobre essas questões. O começo do filme mostra um ambiente típico de um bar – as conversas se interpolam, confundindo-se à agitação do ambiente. Aos poucos, o filme vai destacando alguns grupos de pessoas, que conversam entre si – e, em outros momentos, o filme se concentra numa conversa com uma única pessoa, quase como uma entrevista.

Além disso, há dois recursos visuais incomuns. Carrasco utiliza imagens filmadas numa câmera caseira, quase como em VHS (Carrasco depois disse ser em Hi-8). Com isso, o diretor quis embaralhar as fronteiras entre 1992 e hoje – como se o momento atual ainda refletisse aquele momento histórico. O segundo recurso é que Carrasco divide a tela em duas (split-screen), amplificando as relações entre planos na montagem. A opção é curiosa especialmente porque o filme é quase todo em planos bastante fechados dos depoentes – quase todo o filme é a partir da fala das pessoas. Apenas em alguns poucos momentos surgem cartelas ou imagens de arquivo, como a dos protestos em Cartagena em 1992.

Para além desses recursos visuais que conferem certo clima de novidade estética ao filme, o filme de Carrasco ganha de fato proporção em meio aos depoimentos, especialmente de pessoas simples, trabalhadores das indústrias, ou filhos desses trabalhadores falando do impacto do trabalho na vida dos pais – homens que, ao envelhecer, foram considerados inúteis como força de trabalho, e simplesmente descartados – com sequelas físicas (surdez, acidentes de trabalho) e emocionais (depressão, alcoolismo). A forma direta como Carrasco extrai depoimentos contundentes sobre o impacto do trabalho no corpo e na alma do homem é, a meu ver, a grande chave desse filme.

No entanto, cada vez mais para o final de seu longo filme, Carrasco passa a também contar com os depoimentos de especialistas ou de líderes sindicais para embasar sua análise a nível macro da situação política da Espanha. Quando Carrasco sai dessa radiografia íntima pessoal de pessoas comuns e se desloca para um panorama macropolítico ditado por especialistas, me parece que O ano do descobrimento perde muito de sua potência e quase resvala no filme-de-tese ou no panfleto, quando, ao final, por exemplo, faz uma defesa apaixonada da filiação sindical. A questão que coloco não é se a defesa do sindicalismo está ou não correta, mas a forma cinematográfica que o filme encontra para dar corpo a esse desejo é menos sutil, ou menos potente, em relação a suas estratégias anteriores, tornando-o menos interessante.

De todo modo, ao final, O ano do descobrimento é um profundo exame sobre as repercussões do capitalismo na sociedade contemporânea, examinando o caso espanhol, ou ainda, atendo-se a Cartagena e arredores – oferecendo contraponto da euforia dos grandes eventos midiáticos. Carrasco busca realizar um cinema de direta vocação política, como um documento que reflete a opressão de nossos tempos, mas procura combinar essa abordagem direta com certo vigor cinematográfico.

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