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Festivais

Mostra Cine África (2020) – Fronteiras

Africano, feminista, com o pé na estrada: Filmes da Mostra estão disponíveis online, grátis, até dezembro

Por Ivonete Pinto | 19.09.2020 (sábado)

Acima de tudo, Fronteiras é uma aula de roteiro. O filme chama a atenção sob vários aspectos, em um primeiro momento, por ser uma produção de um país totalmente fora dos circuitos do mercado, inclusive de festivais, que é Burkina Faso. Depois, por ser dirigido por  uma mulher, Apolline Traoré,  e ter como protagonistas  quatro mulheres, nenhuma nos padrões de beleza do mainstream. Claro está que Burkina Faso é um dos países mais pobres do mundo em termos de renda per capta, sua moeda é emitida pelo Senegal, sofre com o terrorismo e a corrupção endêmica e não conta com uma estrutura de produção. Fronteiras (Frontières, 2017)  custou cerca de 10 milhões de euros e é uma coprodução com a França. Os recursos de orçamento e de equipe técnica franceses ajudam na conjugação de talentos que  o filme apresenta.

O roteiro enxuto, também assinado por  Apolline Traoré,  demonstra que em meros 90 minutos é possível contar uma história com vários personagens, todos  bem desenhados, percorrer cinco  países entre o Senegal e a Nigéria,  em um autêntico  road-movie e ainda expor graves problemas políticos e sociais. E mais: consegue administrar humor e drama de forma orgânica, resultando no envolvimento do público. Neste aspecto, vale lembrar que o filme foi exibido na Mostra Cine África, em plataforma de streaming, e a “reação do público” precisa ser relativizada. Mas se funciona em tela pequena, com visionamento individual, em plateias presenciais deve ter funcionado mais ainda.

Uma das melhores surpresas vistas na pandemia, Fronteiras  apresenta-se como um filme feminista, isto porque suas protagonistas passam por situações que só mulheres enfrentam e dão um jeito de, unidas, saírem fortalecidas da experiência. Na jornada destas heroínas, não falta  transformação. A senegalesa  Adjara, a marfinense Emma e a  e a burquinense Sali estão em um ônibus que cruza a costa atlântica da África, passando por vários países (Senegal, Mali, Benin, Nigéria, Burkina Faso). A narrativa se organiza com cartelas que indicam  a entrada em novo país. As personagens  trocam de ônibus em cada fronteira e os  problemas de toda ordem acontecem. Do achaque de guardas que inventam taxas inexistentes, ao roubo puro e simples, até estupro. Homens também precisam pagar propina nas fronteiras, mas o pequeno contrabando em geral é feito por mulheres que viajam de ônibus.

O interessante é que o filme subverte o tradicional bem VS mal, pois as personagens não são planas, ou carregam modelos de moral, ao menos não representam um bloco uno de virtude. São atravessadoras, muambeiras de tecidos a remédios e joias, e uma delas não titubeia em prestar favores sexuais quando um guarda de fronteira exige um atestado de vacina que ela não tem. Isto, inclusive, se passa no início do filme e o espectador pode pensar que o contrato de empatia com o espectador se dará por ali. Porém, as outras personagens vão apresentar  perfil diferente, o que dará a riqueza e a complexidade da união das quatro.

Se uma é  mais ingênua e idealista (Amelie Mbaye), repete várias vezes que conhece a lei do livre trânsito naquelas fronteiras, a outra é  descolada, rude e não confia em ninguém (Naky Sy Savane). Uma terceira (Adizelou Sidi) é ludibriada pelo noivo,  vingando-se sem piedade. Uma quarta tem uma relação mal resolvida com a irmã, e viaja para seu casamento para solucionar o problema. Ou seja, são perfis e objetivos de viagem diferentes, mas fica evidente que elas só irão sobreviver (quando muito) frente à violência, se agirem unidas, na base da sororidade. E Apolline  não faz concessões a uma predileção por desdobramentos felizes; há  tragédias em torno das opções destas mulheres. Na protagonista número um, a que exige que os guardas se comportem dentro da lei, parece se concentrar a próprio recado do filme, que é de não arrefecer.

Se vemos toda sorte de obstáculos pelos quais as personagens passam, podemos imaginar os obstáculos que a própria diretora enfrentou para realizar o filme, rodando em diversos países, lidando com uma equipe diferente em cada um deles (não deixe de olhar os créditos finais). Segundo Apolline, o primeiro movimento foi buscar uma patrocínio máster, através da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental. Mesmo assim, em cada fronteira, a burocracia com as autorizações, somada aos achaques, eram vivenciados pela equipe também, o que tornaria seu making of um documentário poderoso. Ela afirma que foi uma questão de honra não ceder à corrupção para passar as fronteiras. Ou seja, uma questão e honestidade para com o próprio tema do filme, que se insurge contra a corrupção.

A diretora burquinense Apolline Traoré, com a bagagem de cinco longas no currículo,  orquestrou uma mistura incrível de línguas, onde predomina o francês, por razões de colonização destes países. Filha de diplomata, Apolline estudou cinema nos Estados Unidos, de onde  herdou a tarimba para a narrativa clássica na relação de causalidade e que objetiva comunicar-se com plateias heterogêneas. Este modo de narrar, acrescido do domínio dos elementos técnicos, que  lhe rende críticas na África, não impede que Apolline não tenha raízes na pequena cinematografia de Burkina Faso. Em suas entrevistas, ela cita a influência de nomes como Idrissa Ouedraogo e Gaston Kaboré. Além, naturalmente, da  grande referência que significa o nome do senegalês Sembéne Ousmane, diretor do clássico La Noire de…(1966)

Apolline Traoré pode não ser aceita como gostaria no meio cinematográfico africano  em função de seu estilo assumidamente clássico (i.e., hollywoodiano). Quem somos nós para julgar,  mas  é com ele que ela atinge plateias maiores e leva o nome de seu País a ser conhecido, para além dos índices de violência, miséria e  corrupção.

Outras informações sobre a Mostra Cine África no site do evento (clicar aqui), que fica disponível online até dezembro de 2020.

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