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Festivais

Roterdã, IFFR (2022) – The Child

Filme português é um dos destaques da Tiger Competition

Por Marcelo Ikeda | 11.02.2022 (sexta-feira)

Ainda que não seja um filme que propõe, de forma mais radical, novos caminhos para a linguagem ou a dramaturgia do cinema, A criança me pareceu ser um dos destaques dessa edição da Tiger Competition do Festival de Roterdã 2022, pela forma madura como a dupla de jovens realizadores resolveu a mise en scène dessa joia dura e delicada.

O cinema brasileiro é um cinema bastante plural. Assim como o cinema português. Mas, ainda assim, sinto que A criança é um filme que bebe da profunda tradição do cinema português, por meio de três elementos: o drama sóbrio de época, baseado em adaptação literária/teatral, com forte presença da palavra, e por uma notável melancolia que expressa, de forma indireta, um decadentismo sobre os rumos da própria nação portuguesa.

A criança explora um mundo que desmorona lentamente por dentro, por meio de suas próprias contradições. Os personagens não deixam de ser personagens-tipo, mas possuem uma estrutura psicológica elaborada o suficiente para mostrar sua individualidade, suas contradições, seus medos, desejos e esperanças. Bela é um menino pobre adotado por um casal nobre mas que acaba por tomar o lugar do filho, quando este vai a uma viagem e nunca retorna. Bela deve ocupar o lugar do filho não apenas por questões afetivas mas também pragmáticas, uma vez que seu tino para os negócios pode ajudar a recuperar economicamente essa família ameaçada. Mas ele está apaixonado por uma empregada marroquina que trabalha numa paróquia e não parece interessado em ocupar esse lugar.

Tudo, então, vai desmoronar. Bela precisa deixar de ser essa criança e tornar-se adulto. Tornar-se adulto significa resignar-se aos papeis sociais, respeitar os valores das instituições e, acima de tudo, deixar de amar. Aos poucos, uma teia de ciúmes, segredos, paixões, ressentimentos e traições vão se desvelando, mostrando as contradições internas desses personagens que levarão ao fracasso final.

No entanto, ao mesmo tempo que o roteiro articula com habilidade as esferas individual (a psicologia) e coletiva (o sociológico), quase como uma novela de Stendhal ou Flaubert, o filme possui um sutil, delicado mas poderoso trabalho de mise en scène.

Não é o filme que desperte as atenções por suas invenções formais, mas isso não implica que não haja um profundo trabalho de linguagem. Dou um exemplo. Há um momento em que, por meio de uma narração, Bela afirma que notou uma prega, perto da boca, no rosto do amigo Jacques, que vemos em close. “Um vinco que significava quase nada”. A percepção desse vinco no rosto do amigo enquanto lhe contava um caso fez com que Bela desistisse e mudasse o rumo da história. A criança é justamente sobre como uma crise se instala por trás desse pequeno vinco. O filme é justamente sobre o que esse “quase nada” revela, e só é possível percebermos o que acontece por esse “quase nada”.

Em outro momento, Bela se recolhe ao seu quarto, num momento de crise. Ele se olha no espelho, mas, ao se perceber retraído, muda sua postura. Passa a ser outro, maior, “o novo príncipe da casa”. Ele vai ao corredor, e arranca a cortina que protege o quadro do verdadeiro filho. O verdadeiro filho é um quadro; sua formação como príncipe acontece como imagem distorcida diante de um espelho. Por meio de ecos de um Oscar Wilde, enquanto Bela olha para essas imagens distorcidas de si, entre o espelho e a pintura, está o filme. Ao mesmo tempo, quando assim ele se percebe, ele já não é mais o filho, mas sim o próprio pai. A criança cresceu e se tornou adulta. E, quando se cresce, não se pode mais amar. Jacques e Rosa, os eternos criados, se vão para longe. Quem ali permanece está destinado a apodrecer. Enquanto isso, a natureza permanece, com as folhas das árvores que se agitam. São nesses momentos que a sóbria adaptação literária de Der Fidling, Heinrich von Kleist, com forte uso da palavra e produção esmerada aos moldes do melhor estilo Paulo Blanco, desvela sua vocação cinematográfica, por como os jovens diretores encontraram uma forma cinematográfica pessoal própria, ainda que em diálogo com uma ampla tradição do cinema português, para expressar esse sentimento dessa melancolia tão portuguesa.

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