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Críticas

Pedágio

Multitemático e multicomplexo

Por Ivonete Pinto | 05.12.2023 (terça-feira)

Pedágio é  sobre ser mãe solo, sobre religião,  classe,  raça,  cura gay, mulher fazendo malabarismo para não sentar no vaso sanitário usado antes por um homem, sobre a hipocrisia religiosa e sobre… pedágio. Pedágio, se quisermos encontrar metáforas, pode ser no sentido de precisamos pagar um preço para seguir em frente nesta vida, mas pode ser o pedágio como mais uma possibilidade de virar alvo de um assalto. O filme  é também sobre assaltos

A diretora Carolina Markowicz  percorre todos estes temas, sendo difícil afirmar que exista um tema central. Por isso, talvez, um título que soa pouco inspirado para o tanto que o filme almeja. E de certa forma alcança. Se pensarmos em termos de diálogo com o espectador médio, é facilitado por uma narrativa mais ou menos clássica;  um exemplar que teria todos os elementos para fazer boa bilheteria. Inclusive uma atriz protagonista, Maeve Jinkings, conhecida do grande público até por fazer novela na Rede Globo. No entanto, a bilheteria não promete (em uma sessão de sexta-feira à tarde, em sala de shopping, ter apenas duas pessoas na plateia é um indicativo). Ok, o personagem de  Tiquinho (Kauan Alvarenga), filho de Suellen (Jinkings), é um jovem de 17 anos, negro e gay, que se sente vivo quando dubla cantoras de jazz. Ter uma pessoa preta e  gay em um filme afasta o público? Suposto que não é isto, por mais que algum crítico pense assim.  O público anda afastado do cinema. Não só do cinema brasileiro,  como até dos blockbusters americanos (Napoleão ganha de Jogos Vorazes em números, estampam as manchetes, porém são números muito aquém do que  Ridley Scott e esta franquia já ostentaram). A crise da sala de cinema é evidente, há o streaming, etc. etc.

Em ‘Pedágio’, as questões identitárias permeiam a complexidade moral das personagens, desafiando a reflexão sobre temas contemporâneos.

Para ir além da constatação, a crítica brasileira  precisa destacar as produções de qualidade como Pedágio, pois são filmes que ficam. Usam as pautas identitárias para pensar o seu tempo, refletindo não apenas sobre atrasos e avanços nas questões temáticas já  citadas, como também sobre como a construção de uma personagem pode ter nuances que nos questionam a todo tempo sobre o aspecto moral a vida. Para conseguir dinheiro, Suellen [um pouco de spoiler aqui] presta serviços para uma quadrilha alegando que faz isto pelo filho. “O que uma mãe não fez pelo seu filho!”, diz ela. Ou seria uma desculpa para ela ter um Rolex?

Contradições – No início do filme, somos apresentadas a uma mulher moralmente forte, intransigente quanto ao comportamento do namorado (Thomas Aquino). A mudança de atitude dela, num primeiro momento, pode parecer falha do roteiro. E há margem para esta opinião, claro, mas na defesa da roteirista e diretora Carolina Markowicz, é possível enxergar ali uma pesquisa sobre o ser humano, com seus defeitos, contradições, dúvidas, desesperos. Entra nesta conta, a  performance de Maeve Jinkings, que fica no fio da navalha nesta mudança, e o que vemos, por meio do seu olhar, da decupagem e da passagem de tempo, é que não há harmonia ou coerência na vida real. As mudanças podem ocorrer, mas podem não ser definitivas, incluindo  a personagem da colega de pedágio (Aline Marta Maia ), que dá vazão às suas demandas sexuais atribuindo ao demônio a natureza das mesmas. E o que permanece é a dúvida se as personagens de fato adquiriram a consciência sobre a necessidade das mudanças comportamentais, sem as quais não há progresso. 

Na obra de Carolina Markowicz, destaca-se uma investigação profunda acerca do ser humano, explorando falhas, paradoxos, incertezas e angústias.

É pertinente notar que a diretora já trabalhava com personagens complexos em Carvão (2022), seu primeiro longa. Também protagonizado por Maeve Jinkings, igualmente há ali o peso das atribuições que só as mulheres têm (arrimo de família, cuidadora, etc) e como enfrentam situações que a levam para o crime. Carolina Markowicz, não à toa, vai se firmando como uma realizadora importante. Seu reconhecimento no Brasil, como colonizados que  somos, vem a partir do exterior. Um deles a de ter sido a primeira brasileira a receber o Tribute Awards, no TIFF, Festival de Cinema de Toronto de 2023, como um talento emergente.

Já Maeve Jinkings há algum tempo  passou de promessa para uma consolidação. Não há filme que ela não domine a cena e acrescente camadas para dentro da natureza das personagens, com aqueles seus olhos grandes e expressivos.  A dupla Jinkings/Markowicz, a despeito de seus sobrenomes estrangeiros, está comprometida com as mazelas do Brasil profundo. Elas o fazem  explorando as problematizações da alma humana, dignas de Dostoievski. 

[Contem ironia] Baixando um pouco o nível, diríamos que Markowicz vai do escritor russo a Tarantino, pois que arranjou uma solução através da vingança para (nos) fazer justiça com o personagem mais hipócrita de todos, o pastor-terapeuta  português (o sotaque dele renderia mais assunto, que fica para outra oportunidade). Para maiores detalhes sobre o enredo, incluindo uma objeção às cenas da cura gay, leiam o artigo de Luiz Joaquim no CinemaEscrito, visto na 47ª Mostra de São Paulo. Ter o filme lançado em salas de cinema não alternativas, pouco tempo depois,  já é de se comemorar.

Por essas e por outras que o cinema brasileiro pode ser festejado neste momento, sim. Há nichos temáticos, mas também há diversidade de perspectivas dentro e fora deles. Uma diversidade que faz pensar nas nossas comezinhas questões sociais, raciais e de gênero. E que pode também encontrar interessantes estudos sobre a psique humana, como em Pedágio.

Leia também texto de Luiz Joaquim para Pedágio

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