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Clássicos

O Criado (1963)

Aristocracia e o popular, a burguesia e o proletariado, o rico e o pobre sobre a mesma face de uma moeda

Por Luiz Joaquim | 01.05.2020 (sexta-feira)

Falar da elegância do cinema em Joseph Losey é chover no molhado, mas, em 1963, o já renomado diretor britânico que havia chamado a atenção desde seu primeiro longa-metragem, O menino dos cabelos verdes (1948), apresentava agora um outro degrau de sofisticação cinematográfica ao mundo com O criado (The Servent, GB).

Losey tinha acabado de sair da glória de Eva (1962), celebrado no Festival de Veneza no ano anterior, com Stanley Barker vivendo um escritor que tenta trabalhar em Veneza até perder a paz ao conhecer a sedução da francesa vivida por Jeanne Moreau.

Com O criado, Losey estabelece um particular patamar no aspecto metafórico que o cinema pode sugerir com a presteza de sua linguagem. Com o filme, o cineasta deu um prato cheio ao espectador para que este se refestelasse nas melhores elucubrações a respeito da luta de classe, tendo como ponto de partida a conflituosa relação entre o aristocrata Tony (James Fox, não confundir com o afro-americano Jamie Foxx) e Barrett (o ótimo Dirk Bogarde) que apresenta seus serviços para trabalhar como criado na nova casa do lord inglês.

De entrada, Losey oferece no início do filme um plano-sequência com a câmera flutuante de Douglas Slocombe desbravando a casa, recinto por recinto, como que antecipando o espírito invasivo de Barrett na vida de Tony. Barrett chega ali para uma entrevista de emprego e adentra a casa sem avisar por uma campainha ou por um bater à porta, ainda que ela esteja entreaberta. Barret entra, conosco espectadores, e encontra(mos) Tony cochilando e indefeso. É a primeira expressão, no filme, de poder do proletário sobre o burguês.

A casa, em si, um cenário de minúcias e ricamente construída para ajudar a desenhar a personalidade de Tony, é um personagem a parte. Abre o filme vazia, em reforma para a mudança de seu proprietário e, depois, apresenta-se aconchegante com o requinte e a elegância, quase nobreza, que se espera de seu novo dono. Na segunda metade do filme, após uma reviravolta de hierarquias e fusão de valores, há a degradação do imóvel, ou apenas a revelação do que há de concreto nela, do que ela cruamente é, do que se pode enxergar por trás dos belos papeis de parede e sem a bela decoração. É algo por si só simbólico ao que vamos descobrir a respeito de Tony.

A primeira metade de O criado segue um enredo realista, com a elegância estética predominando a tudo que se vê na tela, para nos colocar diante de um enredo de apresentações dos dois homens com suas pretensões (as superficiais e as submersas), além da contextualização da noiva de Tony, Susan (Wendy Craig) e da parceira de Barrett, Vera (Sarah Miles).

A condução segue firme dentro de uma narrativa que não deixa duplo sentido a respeito dos movimentos que seus personagens dão em direção aos seus objetivos. Nesse momento, Losey aproveita-se da inteligência cinematográfica para desenhar o plano de sedução de Vera sobre Tony, apoiado apenas em planos fechados no rosto dos atores, sob o som dos pingos de uma sexualmente sugestiva molhada torneira e o toque libertador de um telefone. É uma aula de cinema.

Na segunda metade do filme, a partir do rompimento com o realismo, cuja transição se dá num pub em que Barrett pede desculpas a Tony, O criado sobe a um outro patamar de valores, agora metafóricos, cujos os mais comentados ao longo das análises já feitas sobre o filme têm sido os de uma representação da luta de classes, o que é bem pertinente.

Mas há, em nossa visão, também uma carga psicanalítica bem representativa ali. A partir daquele ponto do filme, o criado Barrett e o aristocrata Tony passam a ser a mesma pessoa. São os dois lados de uma mesma moeda, com um complementando o outro em suas personas. Nos mostrando que mesmo sendo ele um lord, estaria incompleto sem a manifestação de seu lado mundano; e nos mostrando que seu empregado estaria também incompleto sem a sua pretensão ao autoritarismo.

Ou, se preferirem uma leitura mais sociológica, é como se nos fosse revelado nuamente que o lord não está completo sem o seu lado proletário e que o proletário é um incompleto se ele não manifesta o seu desejo pela aristocracia.

Esse refinamento deve, certamente, seguir caminhos próprios da linguagem literária na novela homônima escrita por Robin Maughan, e, também certamente, ganhou a dimensão metafórica que lhe cabia no cinema pela adaptação do roteiro feita por Harold Pinter (parceiro em vários projetos do diretor), com tudo sob a administração superior de sutilezas de Joseph Losey.

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