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Festivais

1º Fest. Cinema Negro em Ação (2020) – Raízes

Onde a estrada acaba

Por Ivonete Pinto | 29.11.2020 (domingo)

acima, imagem do filme Raízes

Raízes é o diário de uma busca. Seus  métodos nos lembram as investigações de Kiko Goifman em  33 (2003), onde o documentarista tentava saber quem teria sido sua mãe biológica. Mas uma diferença é crucial entre os dois: Goifman só não sabia de sua origem porque foi adotado quando bebê.

O protagonista de Raízes é um jovem negro que, consciente da importância de conhecer minimamente a história de sua família, empreende sua busca, num gesto que é antropológico e  também político. O artista plástico paulista  Kelton Campos Fausto empresta sua história – que poderia ser de qualquer jovem preto brasileiro – para o coletivo formado por  Carlos de Nicola, Nai Mendl, Simone Nascimento e Wellington Amorim,  com direção assinada pelos dois últimos. O filme, rodado em 2016, foi o vencedor do I Festival de Cinema Negro em Ação, que encerrou sexta-feira (27/11), iniciativa do Instituto Estadual de Cinema, com coordenação de  Camila de Moraes (O Caso do homem errado, 2017), a primeira cineasta negra a ter um longa exibido em sala comercial depois de Adélia Sampaio. Exibido pela TVE do Rio Grande do Sul, Raízes pode ser visto nos dias em que a capital do estado chocou o mundo com o assassinato de  João Alberto Freitas no estacionamento de supermercado Carrefour. Embora o documentário não fale deste tipo de violência, fica claro que não ter direito à história de sua ancestralidade igualmente é uma violência. De outra ordem, mas que marca qualquer jovem que se dá conta que não consegue fazer sua árvore genealógica em função da origem escravizada.

Um dos primeiros movimentos de Fausto é até didático. Ele visita o Museu da Imigração do Estado de São Paulo e não encontra nem vestígios da sua ancestralidade oficial, registrada. Somente imigrantes italianos, alemães, japoneses, árabes podem se ver nos mapas traçados pelo museu. Isto é violento.

Como violentas são também as constatações que o personagem vai fazendo para a câmera, quando comenta da religião evangélica assumida pelos seus pais. Ele, por sua vez, tem seu orixá e lamenta que parte da família não reconheça sua negritude, tendo uma de suas irmãs o hábito de alisar o cabelo. A irmã encontre a autoestima jogando o cabelo numa gesticulação branca. Ele questiona isto para o dispositivo, não diretamente para a irmã. Não há conflito no filme, Fausto não confronta a família, pois o objetivo é outro, é poder encontrar peças para montar sua árvore genealógica. Não há dúvida que seu projeto irá impactar sua irmã e o resto da família em algum momento. Talvez o filme venha a reverberar com a prima que tem mãe branca e pai preto e  não se considera negra porque tem a pele clara. Se reconhecer como negra, mesmo tendo a pele clara, parece uma condição para se processar a consciência de raça.

Na memória deste rapaz, um álbum de fotos antigas reforça a urgência da busca, já que ele descobre que não conhece muitos rostos. Sabe que são parentes, mas não têm identidade. Fosse em uma família branca e rica, conclui ele,  teriam nome, sobrenome, data de nascimento nas fotos. Fausto diz que fica vendo as fotos, mas tem  uma hora que  que “acaba a estrada”:  não tem avós, nem bisavós no álbum. Vê uma foto e diz que acha que aquela pode  ser sua avó, mas não tem certeza.

Em outro museu, Fausto percebe com mais ênfase a tragédia de sua origem ao ver a impossibilidade de identificar a simples etnia das pessoas escravizadas. Os documentos indicam no máximo o porto onde seus ancestrais embarcaram para o Brasil. Mais de cinco milhões de pessoas sem registro. Como somos a nação mais negra fora da África, é também a nação com mais nomes que não conseguem acessar sua história familiar.

Em uma visita ao quilombo São Pedro, em São Paulo, cuja  comunidade nasce a partir do século retrasado,  Fausto, sempre na tentativa de um resgate de sua identidade,  conversa com  uma das lideranças. O rapaz tem sua vida voltada a esta consciência e com o notebook consegue localizar parentes em um site especializado.

Em sua jornada, Fausto (sobrenome adotado, que guarda relação com o nome da cidade de registro, provavelmente, de seu tataravô), vai a Minas Gerais atrás de sua família e lá encontra em um cartório alguns nomes para preencher um pouco mais sua árvore genealógica. Ela tem ainda poucos galhos, mas ele fica eufórico quando descobre uma carta de um avô, escrita nos anos 50. É quem sabe o documento mais antigo que irá encontrar de um familiar.

Vários filmes já tratam destas questões, mas nunca serão suficientes para aplacar uma tristeza que é inerente a esta impossibilidade de conhecer a história de seus ancestrais. Muitos negros adquirem a consciência da raça a partir deste sentimento que surge  quando se deparam com esta diferença brutal em relação a todos as outras etnias que formaram nosso País.

Raízes  dialoga com o francês Abrir a Voz  (Ouvrir la Voix, 2018)  de Amandine Gay, visto no FIM (Festival Internacional de Mulheres). Nele, mulheres negras têm suas vidas ligadas à história colonial europeia na África e nas Antilhas. São filhas de imigrantes, refugiados ou não, que questionam o que significa serem “francesas”.  São dramas identitários que nossa época constrói, não sem a negação de muitos brancos.

Quanto à forma de Raízes, percebe-se que há momentos de alguma gordura, que ele poderia ser enxugado sem prejuízo para o quer contar (diretores costumam receber mal este tipo de observação quanto ao tempo das cenas, paciência, é prerrogativa da crítica atentar para este dado).  Já a trilha sonora tem intervenções precisas e fortalecem a narrativa. E se tem um recado que fica das andanças de Fausto para encontrar suas raízes, é de que o buraco (um dos buracos) está  na formação de  todos nós. Desde 2003 existe uma lei que obriga escolas públicas e particulares da educação básica a trabalhar conteúdos relacionados à história e à cultura afro-brasileiras. São menos de 20 anos de vigência, não é possível enxergar resultados ainda. Mas não há dúvida que a informação alimenta o relato, que produz as consciências.

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