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Sweet Sweetback´s Baadasssss Song

Humberto Pereira da Silva resgata pontuações sobre o filme manifesto do movimento blaxploitation

Por Humberto Silva | 27.05.2021 (quinta-feira)

Um aspecto notável no cinema norte-americano desde a década passada é a forte presença da temática racial. E, em grande parte dos filmes, com recorrência a certo revisionismo histórico, principalmente sobre o conturbado momento da luta pelos direitos civis na década de 1960. Como ilustração, este ano, entre os concorrentes ao Oscar, dois filmes entrelaçam os mesmos acontecimentos e joga luz sobre um personagem tão marcante quanto carismático: Fred Hampton, ativista e liderança dos Panteras Negras, é protagonista em Judas e o messias negro e coadjuvante em Os 7 de Chicago. De fato, desde a segunda década deste século, não só com foco nos anos de 1960, mas igualmente em diferentes momentos da história americana, a temática racial tem sido constante.

Como decorrência, uma leva de jovens atores, atrizes e diretores negros e negras tem despontado. Quanto à representação dramática, Chadwick Boseman é um nome que com certeza ficará para história como um dos mais impressionantes da geração atual (sua morte precoce e inesperada contribui para a mitologia, mas, de fato, suas atuações mesmo em filmes pouco expressivos merecem atenção). Lembro também que, entre as mulheres, a última década reserva um lugar especial para a já veterana Viola Davis. Entre os diretores, se Spike Lee tem pontificado por muito tempo como o grande representante do cinema de temática racial, mais recentemente entraram em cena Jordan Peele, Barry Jankins, George Tilman Jr., Steven McQueen, Ryan Coogler, Reginald Hudlin, Shaka King, Ava DuVernay, Kasi Lemmons (as duas últimas, diretoras que quebram a hegemonia masculina), para ficar apenas nesses nomes. Assim, do que vi e me impressionaram, destaco: 12 anos de escravidão (2013), Fruitvale Station: A última parada (2013), Selma: Luta pela liberdade (2014), Os oito odiados (2015), Moonlight: sob a luz do luar (2016), Corra! (2017), Marshall: igualdade e justiça (2017), O ódio que você semeia (2018), Se a rua Beale falasse (2018), Infiltrado na Klan (2018), Pantera negra (2018), Harriet (2019), Destacamento blood (2020) – com exceção de Quentin Tarantino, todos dirigidos por afrodescendentes. Esta lista não é nenhum pouco exaustiva e atenta para a diversidade de gêneros, focos temáticos, questões, alcance para o público de blockbuster: luta pelos direitos civis, violência policial contra os negros, escravidão, preconceito estrutural, vícios no tratamento dado aos negros pelo sistema jurídico, cotidiano de famílias negras, submundo do crime, mundo dos super-heróis e homossexualidade realçam a amplitude do espetro.

Claro, desde pelo menos Nascimento de uma nação (1915), de D. W. Griffith, a temática racial está presente na produção cinematográfica norte-americana (e não seria diferente num país em que a libertação dos escravos levou a uma sangrenta guerra civil e ao assassinato de um presidente). Vale ressaltar também que, contemporâneo de Griffith, o cinema americano revelou o diretor negro Oscar Micheaux, que realizou o pouco lembrado The homesteader (1919). A questão, ao longo do tempo, é de abordagem, do papel do negro na sociedade norte-americana e, mais recentemente, como as narrativas são forjadas nos grandes estúdios (questão do revisionismo) e sua incidência na premiação do Oscar (a ausência de atores e diretores negros na premiação de 2016 levou à criação da #OscarSoWhite). Na Hollywood clássica, devidamente codificada pelo Código Hays, o protagonismo de um personagem negro não era recomendado – mesmo qualquer relacionamento amoroso entre branco e negro; ou ainda, antes do código, em Griffith, o negro era o estuprador de mulheres brancas. Certo, mas em certo sentido o boom atual pela temática racial também não é um acontecimento novo no cinema norte-americano. Sem a cobertura de grandes estúdios, capacidade de distribuição e exibição em espaços diversos e presença destacável em várias categorias do Oscar, a década de 1970 viu surgir o movimento blaxploitation. Sem a força midiática das realizações da década passada, surgidos no contexto da luta pelos direitos civis, da contracultura e das transformações no cinema americano com a Nova Hollywood, os filmes blaxploitation foram de fato uma novidade: responsáveis por uma vasta produção com foco na temática racial, realizados em sua maioria por estúdios independentes (destaque aqui para a American Internacional Pictures, conduzida por Roger Corman), simbolizam apropriadamente o sentido das mudanças pelas quais o cinema norte-americano passou da segunda metade da década de 1960 até o final da de 1970.

O “cinema negro norte-americano” nos anos de 1970 – mais precisamente: de temática racial – eclode em sintonia com os filmes “exploitation”: literalmente, filmes de “apelação”. Trata-se, em geral, de produções sem a presença de grandes astros e que têm como atrativos temas sensacionalistas: sexo, drogas, violência; enfim, assuntos que atinjam um público ávido pelo incomum com doses de morbidez. Um filme exploitation, assim, depende fundamentalmente de propaganda sensacionalista e da morbidez do tema ou do enfrentamento de questões controversas, pouco sensíveis à expectativa padrão no cinema comercial. Nas décadas recentes, Quentin Tarantino é um dos mais notórios divulgadores de filmes exploitation. Inserido, pois, na produção de filmes exploitation, a blaxploitation, para além do apelo à “questão do negro” na sociedade norte-americana, traz inquietações e um viés crítico sobre o contexto cultural e político, assim como põe em pauta a produção de filmes de temática racial na Nova Hollywood.

Invariavelmente protagonizados por atores e atrizes afro-americanos, os filmes blaxploitation tiveram como público-alvo, principalmente, os negros norte-americanos. A atriz Pam Grier, que estrelará Jackie Brown (1997), de Quentin Tarantino, foi presença constante nesses filmes. Já entre os atores, destaca-se Richard Roundtree, estrela de Shaft (1971), que popularizou o movimento. Um dado característico em praticamente todos os filmes do movimento foi o uso de músicos, arranjadores e compositores da música negra norte-americana: Isaac Hayes, James Brown, Barry White, Marvin Gaye entre outros. As trilhas musicais dos filmes blaxploitation mostram uma confluência poucas vezes vista entre música, cinema e afirmação de identidade racial. Dos diretores do movimento, por outro lado, o que mais teve projeção e influência foi Melvin Van Peebles, que legou o mais cultuado e paradigmático filme blaxploitation: Sweet Sweetback´s Baadasssss Song, lançado em 1971 (Um adendo importante: negros não controlavam o sistema de produção, assim como, além de Peebles, poucos negros assumiram a direção: a maioria dos filmes blaxploitation foi dirigida e produzida por brancos).

De modo que, considerada a vasta produção de filmes blaxploitation na primeira metade da década de 1970, do ponto de vista da linguagem, do conteúdo e do impacto cultural e político, o marco do movimento é Sweet Sweetback´s (Huey P. Newton, criador e ícone dos Panteras Negras, afirmou sobre ele: “é o primeiro filme negro verdadeiramente revolucionário feito por um homem negro”). Realizado pelo estúdio Cinemation Industries, uma companhia de Nova York igualmente especializada em filmes exploitation, dá o sentido das dificuldades das questões raciais quando um filme assumia uma feição marcadamente política, de afirmação cultural dos negros na sociedade norte-americana e na indústria do cinema: Sweet Sweetback´s é um filme blaxploitation cujos créditos de atores anunciam “A comunidade negra”; só em seguida, sem destaque, aparece o cast. O influente crítico Roger Ebert, do Chicago Sun-Times, exatamente por isso, não o considera um exemplar de filme exploitation.

Melvin Van Peebles como Sweetback

As condições de realização de Sweet Sweetback´s foram peculiares. Sem maior pretensão política ou envolvimento com o convulsivo movimento negro norte-americano, Peebles, na França, rodou The story of a three-day-pas (1968) – história de um soldado negro na França que recebe três dias de folga, vai se divertir e é tratado como negro servil, um uncle tom do romance A cabana do pai Tomás (Este primeiro longa de Peebles foi exibido no Festival de Cannes). A Columbia Pictures, por sua vez, tinha na mesa o projeto de uma comédia em que um homem branco acorda metamorfoseado em negro. Sabendo de seu filme feito na França, o projeto foi oferecido a Peebles, que realizou, A noite em que o sol brilhou (1970), o qual, por sua vez, foi bem recebido pelo público, tendo em vista as pretensões do estúdio. Peebles, então, se anima e leva para a Columbia o projeto de Sweet Sweetback´s, com a condição de que ele queria controle total do filme. O projeto foi recusado, Peebles, em decorrência, bancou a produção, que foi realizada e lançada pela Cinemation Industries: Sweet Sweetback´s custou apenas 100 mil dólares e rendeu em torno de 15 milhões. Seu impacto junto ao movimento negro, especialmente os Panteras Negras, foi enorme.

Assim, de modo paradoxal, pois em certa medida, seguindo Ebert, não é propriamente um filme blaxploitation, Sweet Sweetback´s teve um efeito sem par num contexto de afirmação racial. No momento em que a Nova Hollywood estabeleceu um novo modelo de produção em conformidade com a realidade presente, Peebles fez um filme que ancora os limites dessas transformações. Pelo caráter transgressivo, no conteúdo e na forma, e principalmente pelo sucesso de público quando lançado, indica as contradições da indústria de cinema na Nova Hollywood. Por motivos que provavelmente escapam ao fator dinheiro, foi rejeitado pelos executivos da Columbia (vale ressaltar que, por diluir em grande medida a questão da afirmação racial e se centrar no submundo do crime, Shaft, dirigido por Gordon Parks, um celebrado fotógrafo negro, tornou-se o filme mais conhecido do movimento e foi, justamente, produzido pela MGM).

Transgressor desde os créditos de abertura

Sweet Sweetback´s é transgressor no conteúdo e na forma. Na forma porque já desde os créditos de abertura anuncia a “comunidade negra”. Além disso, trata-se de um thriller que segue as rupturas de linguagem propostas por Jean-Luc Godard em Acossado (1960). Ou seja, exibe uma narrativa dinâmica e fragmentada que quebra o tempo todo as convenções do cinema e, por conseguinte, as expectativas do espectador. A se notar, em especial, o modo como Peebles explora o plongée, o zoom e os filtros de cores. Ao explorar esses recursos, ele situa o protagonista do filme num espaço amplo, vazio e sem direção precisa, ao mesmo tempo em que, em sintonia com a contracultura, o insere numa situação de transe lisérgico. Importante notar igualmente como, nas sequências em espaços fechados, a iluminação escassa torna a movimentação dos personagens indefinida e sujeita a imprecisões. Por conta do efeito de iluminação, muitas sequências precisam ser revistas para que se tenha a compreensão do que se passa, pois além da falta de iluminação, Peebles opera com cortes (jump cut), fusões e sobreposições que desnorteiam o espectador.

Além da transgressividade formal, Peebles igualmente foi transgressivo no conteúdo. A trama exibe um jovem órfão afro-americano que é levado para morar num bordel em Los Angeles na década de 1940. No bordel, ele é estuprado por uma das prostitutas, que o chama de “Sweet Sweetback´s” em razão de suas proezas na cama. Anos depois, adulto, ele entretém os clientes do bordel fazendo apresentações com orgias sexuais. Num ambiente em que a presença da polícia e a violência é constante, ele é acusado pelo assassinato de um jovem negro. O filme, então, exibe como se opera a corrupção policial e o conluio desta com os próprios negros: Sweet Sweetback´s seria entregue como boi de piranha para apaziguar os ânimos. Sob pressão, ele não se entrega e, numa batida policial, se envolve no assassinato de dois policiais. Novamente acusado, ele não coopera com a polícia e busca proteção nos cafetões, nos motoqueiros dos Hells Angels e nos Panteras Negras. Até que, após encontros e desencontros caóticos, Sweet Sweetback´s fica encurralado e inicia, solitário, uma fuga errática (embalado pelo som da então desconhecida banda de soul music Earth, Wind & Fire), sendo caçado como uma fera em fuga. A narrativa, então, ganha ares de thriller com o espectador na expectativa de que ele cruze a fronteira do estado para escapar ao cerco policial e assim chegar ao México.

Cena de ‘Sweet Sweetback`s baadasssss song’

Peebles, claro, criou um anti-herói, que estava na hora errada e no lugar errado. Mas, uma hora errada e um lugar errado onde efetivamente negros e policiais se encontram. Quer dizer, o incidental tão só revela que a liberdade de movimentação para os negros nos Estados Unidos tem seus limites: o encontro devidamente previsto com a polícia. A partir daí, como o cinema recente tem exibido em filmes como O ódio que você semeia ou Se a Rua Beale falasse, o confronto trágico e as narrativas que acentuam o tratamento desigual dado aos negros. Anti-herói, o protagonista de Sweet Sweetback´s sabe que foi julgado antes de qualquer julgamento, ou que o julgamento seria mera formalidade legal no sistema jurídico norte-americano. Peebles exibe o assassinato como um ato de defesa frente à brutalidade da abordagem policial. Mas, essa a mensagem principal do filme, seu protagonista, um negro, jamais teria um julgamento justo. Sob esse aspecto, Sweet Sweetback´s faz remissão ao episódio em 1968 no qual Eldridge Cleaver, uma das mais ativas lideranças dos Panteras Negras, se viu envolvido num confronto com a polícia que resultou na morte de um pantera negra, que o acompanhava, e no qual dois policiais e o próprio Cleaver foram feridos. Acusado de tentativa de homicídio, Cleaver fugiu, primeiro para Cuba e depois para a Argélia.

Sweet Sweetback´s, apensar do caráter transgressivo e da recepção na época em que foi realizado, logo – assim como o próprio movimento blaxploitation – caiu no esquecimento. Daí que, assim entendo, no momento em que o boom recente de filmes de temática racial nos Estados Unidos ganha corpo, seria oportuno revê-lo (ainda que baixá-lo seja uma tarefa de garimpo na internet, creio que compensa). E creio principalmente ser oportuno revê-lo porque se trata de uma obra de inegável valor artístico e cultural (Nele, Peebles está perfeitamente sintonizado com a época e assim revela o que mais se pode esperar de uma obra de arte, que retrate o “espírito da época”), tanto quanto nos alerta que o boom de “filmes negros” nos Estados Unidos recentemente foi precedido por um movimento, e um filme emblemático, de forte impacto e que, ao contrário do que ocorre hoje, transitou nas bordas da indústria de entretenimento.

 

Humberto Pereira da Silva é professor de história do cinema na FAAP e na Academia Internacional de Cinema e crítico de cinema. Autor de Glauber Rocha: cinema, estética e revolução (Paco Editorial, 2016) e membro da Abraccine.

Nota do editor: Acompanhe, abaixo, filme do acervo da Reelin’In The Years Productions com entrevista dada por Melvin Van Peebles à época do lançamento de Sweet Sweetback´s Baadasssss Song

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