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Críticas

Medida Provisória

O que funciona e o que não no primeiro longa-metragem de ficção dirigido por Lázaro Ramos.

Por Ivonete Pinto | 25.04.2022 (segunda-feira)

Depois de alguns dias da estreia comercial de Medida provisória (2020), com a poeira das emoções mais assentada, é possível trazer algumas linhas em direção a um distanciamento. Isto, sem deixar de frisar a importância política da produção de Lázaro Ramos e equipe. Mais ainda, sem deixar de comungar da energia que o filme passa e da defesa de sua carga reflexiva. Filme bom é assim: permanece conosco após sua projeção.

Naturalmente, para tomar distância é necessário que mais tempo transcorra, de modo que as observações que seguem são ainda à quente. Valendo avisar  que este texto tangencia a clássica norma de oferecer a sinopse do filme para o situar o leitor que ainda não viu o filme. Por ora, somente esta abordagem particular e um tanto fatiada de algumas propostas formais da obra.

Nesta perspectiva, um procedimento ligado ao figurino chama a atenção logo que as pessoas negras começam a ser presas rumo à deportação. Os policiais usam máscaras brancas,  de maneira que não possamos ver seus rostos. Fosse em ambiente da pandemia, seria fácil entender. Até  remeteria a um episódio de 2021, quando um major da PM paulista foi denunciado por injúria racial porque obrigou policiais negros a usarem máscara branca, sob o pretexto de que as máscaras pretas que portavam eram imperceptíveis. Como o filme é anterior ao coronavírus, o acessório intriga.

Os policiais de Medida provisória são alegorias que representam o Estado. E por que não têm cor? O Estado não é branco nem preto para Lázaro Ramos? Ou os policiais não devem ser julgados pelo espectador porque fazem parte de uma engrenagem e estão ali apenas cumprindo ordens? Em uma encenação realista, veríamos que a corporação é composta por um contingente significativo de negros. Inclusive há estudos que investigam  a relação de ascensão social de negros na Polícia Militar. Podemos, então, pensar que o diretor não quis mostrar policiais pretos para não criar uma espécie de perturbação do simbólico e fazer o público se perguntar, afinal, por que boa parte dos policiais não estava sendo deportada também? Seria uma incongruência do enredo. Além disto, as máscaras nos levam a concluir que de fato o Estado não tem  cor; o Estado tem interesses. O Estado, governado  no contexto do filme por políticos de direita (aquele que propõe a deportação dos negros para a África e os políticos que compram a ideia) é composto por homens brancos.  Portanto, os interesses são da hegemonia branca.

Se a indumentária dos policiais nos sugere ilações pertinentes, em uma cena a linguagem proposta simplesmente não funciona. Ou melhor, funciona para causar um ruído. É quando, em um momento descontraído de  Capitu e Antônio (Taís Araújo e Alfred Enoch), Lázaro Ramos inventa de fazer closes e mais closes nos olhos e nas bocas do casal que dança. As imagens  informam sobre a alegria com que ambos viviam até o pesadelo da medida provisória. Porém a cena é  incômoda, pois estes planos fechados em caras e bocas parecem emular algo da nouvelle vague em planos  que não dizem nada. Se, para a direção, os planos celebram o corpo negro, num gesto político, ficam apartados do resto do filme, em uma linguagem apenas barulhenta.

Outro elemento igualmente chama a atenção, cortando um pouco o envolvimento do espectador na trama em si. As músicas da trilha são magníficas, com intérpretes icônicos,  e sempre narrativas. Ajudam a contar a história. Mas há um excesso  delas e passam, em um determinada momento, a não funcionar mais. São informações que se aglomeram.

Compreende-se perfeitamente a estratégia para conquistar  o maior número de espectadores possível, incluindo aqueles não tão afeitos à gramática do cinema. A própria escolha do protagonista, vivido sem magnetismo  pelo ator inglês Alfred Enoch (Harry Potter) pode ter sua tática  para ser distribuído no mercado externo e chegar a mais gente. Entretanto há coisas que dão resultado, outras que não. Estes dois aspectos (o ator específico e o excesso de trilha musical) são questionáveis porque podem travar uma fruição  mais plena  na experiência de ver o filme.  Na ânsia de comunicar, estes aspectos atrapalham a fruição.

É de se festejar a acolhida que Medida provisória tem tido do público e da crítica e é provável que algumas das questões trazidas aqui estejam também em outros textos. Fica como dica, ler a coluna de João Nunes, que privilegia o que viu de positivo. E mesmo concordando com ele, apenas acrescento outros elementos para pensar. Sugiro ainda a crítica de José Geraldo Couto, que atenta para  o que podemos chamar de problemas do filme, entre eles os planos fechados no casal no momento da dança explorados aqui.

Thais Araújo e Alfred Enoch como o casal protagonista

Lázaro Ramos, embora ocupado com a distribuição e divulgação de seu filme,  é alguém que ouve seus interlocutores (anos conduzindo o programa “Espelho” do Canal Brasil nos mostram isto). Ele está no início de uma carreira como diretor e, diferente de realizadores que ignoram  a crítica – ou a tripudiam, dependendo do perfil do diretor – , sabe que as análises que alertam para os eventuais problemas de um filme podem ser mais ricas do que as adesões irrestritas. Isto não significa  que a crítica que contempla as objeções não perceba e não valorize também a força do filme. Força, neste caso, ancorada na urgência do tema racial, somada a uma energia rara de se ver em um diretor. Não são algumas críticas  que irão nublar esta força. Os artigos que problematizam servem para  pensar o cinema enquanto linguagem, enfim, o meio pelo qual se apresentam as ideias do diretor e sua equipe (não esquecendo que o roteiro é baseado na peça “Namíbia, não”, de Aldri Anunciação).

Por fim, sobre o título do filme, depois de muito matutar, de achar que o nome era mesmo ruim, arrisco dizer que Medida provisória pode sim estar além de uma frieza calculada, de um método brechtniano como apontaram alguns. Um país como o Brasil, onde leis nomeadas como  Ventre Livre e  Lei Áurea,  por exemplo, possuem uma carga de sentidos que nossa história, como nação, não dá conta. Então, nos parece que se este título, num primeiro momento não traz  o peso político que o enredo tem, ele funciona, assim como os policiais sem rosto, como elemento de reflexão a longo prazo.

Ou seja, o título não bate bem com a energia do filme no contexto de seu lançamento, mas vai ficar como ideia: um ato provisório  que o legislativo, representando a sociedade, pode rejeitar ou aceitar para virar lei. No âmbito do filme, o público  está “protegido” pelo invólucro  da distopia, através de uma ficção não realista, que projeta um futuro mais ou menos distante. Como espectadores, nosso desespero traz o alívio de que não haveria chance do disparate acontecer. Mas será que não nos acostumamos demais com os absurdos de certas “medidas provisórias” e deixamos de fazer o que deve ser feito, que é sair quebrando tudo?

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