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Críticas

Tempo

Shyamalan incorpora aqui, a sua filmografia, acertos e equívocos, não se distanciando de suas marcas.

Por Amanda de Luna | 29.07.2021 (quinta-feira)

Quando Alice chega ao país das maravilhas, em meio ao encanto do novo mundo e das estranhezas por que passou logo após entrar na toca do coelho, ela indaga a si mesma: “Meu Deus, meu Deus! Como tudo é esquisito hoje! E ontem tudo era exatamente como de costume. Será que fui eu que mudei à noite? Deixe-me pensar: eu era a mesma quando me levantei hoje de manhã? Estou quase achando que posso me lembrar de me sentir um pouco diferente”.

É com proposta semelhante ao sentimento de Alice que Tempo (Old, EUA, 2021), novo filme de M. Night Shyamalan (O sexto sentido) estreia hoje, 29 de julho, nos cinemas brasileiros. Com uma carreira permeada por obras diversificadas, entre altos e baixos, o cineasta indiano traz seu marcante estilo com uma produção que desperta interesse e curiosidade imediata diante de uma das maiores inevitabilidades que a humanidade sempre se submeteu: as mudanças decorrentes do tempo.

Na história, conhecemos uma família em férias, cujo destino acaba por ser uma bela e isolada praia, onde acreditavam poder passar um dia tranquilo e relaxante. Em vez da toca do coelho, os familiares atravessam uma fenda ostentada por grandes paredões de rocha, até chegar ao maravilhoso e solitário paraíso tropical. Filha e filho anseiam a diversão, esperando aproveitar tudo o que aquele lugar tem para oferecer aos olhos de duas crianças. Para os pais, a viagem, além de tudo, significa uma resposta ou despedida ao casamento em crise, sobretudo, após a descoberta de uma notícia que afeta a saúde de um desses. Eles pretendem, assim, buscar a captação de momentos e memórias enquanto o futuro do matrimônio ainda não é firmado.

Não demora muito até os quatro, junto a outros personagens que compartilham o mesmo destino paradisíaco, perceberem que eventos estranhos acontecem naquele lugar. Como em Sinais (EUA, 2001), Shyamalan também traz aqui um núcleo familiar – e seus conflitos – tendo que lidar com uma ameaça extraordinária mais forte que as próprias crises pessoais de seus personagens. Desta vez, a ameaça se apresenta com o seguinte fenômeno: o tempo naquela praia passa incrivelmente rápido e tudo envelhece com uma velocidade intensa, sem intervalos, inclusive as crianças. A vida delimita-se a um dia. Horas significam anos, e os efeitos do decurso acelerado vão sendo percebidos por todos que estão presos ali, por meio de acontecimentos que resultam em suspense, aflição e horror.

Tempo traz conhecido elenco. Da esquerda para direita: Abbey Lee Kershaw (Lovecraft country), Nikki Amuka-Bird (O destino de Júpiter), Ken Leung (Lost), Thomasin Mackenzie (Jojo rabbit), Rufus Sewell (Meu pai), Aaron Pierre (Krypton) e Vicky Krieps (Trama Fantasma).

O roteiro de Shyamalan tem inspiração no romance gráfico Sandcastle, dos autores Pierre-Oscar Lévy e Frederik Peeters. Sem qualquer obrigação de fidelidade, as obras possuem em comum o desejo de apresentar ao público o mistério. Nesse sentido, o filme estreante busca, principalmente, através da fotografia e do som, oferecer à audiência o sentimento de estranheza e confusão com tudo o que está acontecendo com aqueles personagens. Sem recair no subgênero trash, o realizador indiano consegue provocar em quem assiste a impressão de estar à frente de situações surrealistas que não precisariam ser explicadas.

A fotografia de Tempo é um dos pontos de destaque em toda a produção. Sob a as mãos e técnica do diretor de fotografia Mike Gioulakis, com quem Shyamalan já trabalhou algumas outras vezes, o filme traz à tona uma predileção por planos mais fechados e com ângulos ora sob o ponto de vista dos personagens, ora sob o ponto de vista de um terceiro observador oculto, sempre à espreita, como se analisasse curiosamente toda a situação, pondo os personagens vulneráveis aos olhos de quem assiste. Tais elementos favorecem em muito o tom dado ao filme, conduzindo o suspense e a atmosfera surreal dos eventos que ocorrem na misteriosa praia.

Com essas considerações, é interessante perceber que os aspectos que mais se destacam em Tempo convergem para a ideia do deleite ao desconhecido. Os momentos em que a obra mais funciona estão nas cenas em que a trama ascende cada vez mais para a grande pergunta “o que está acontecendo?”, ao mesmo tempo em que não nos oferece resposta. Por outro lado, o grande problema do filme aparece justamente quando ele nos tenta dar explicações baseadas na racionalidade, prejudicando o tom misterioso que ele mesmo propõe.

O conhecido plot twist tão presente na filmografia de Shyamalan apresenta-se assim, como um ponto baixo nesta produção ao tentar dar conta de todos os segredos e incógnitas que surgiram com os fenômenos e tom amedrontador da praia. Por vezes os diálogos soam excessivamente expositivos e óbvios, numa tentativa de trazer o surreal ao possível, uma escolha presumidamente equivocada, uma vez que ao tentar justificar aquele ambiente com sensatez, acaba por afetar a grande essência absurda do filme.

Gael García Bernal e Alex Wolff protagonizam o filme como pai e filho.

Ensaiando uma tentativa de alegoria ao tempo e como a vida passa depressa sob nossos narizes, o filme chega a oferecer alguns diálogos e frases que nos remetem à essa reflexão. Ao colocar em primeira cena as crianças ansiosas para a chegada ao local, ou ao expor de forma direta a frase “não tenho tempo para isso”, o filme indica de forma despretensiosa a intenção alegórica, sem, contudo, comprometer-se em torná-la uma grande lição ou elemento preponderante da obra. Tal percepção nos mostra, mais uma vez, a consciência de que o grande trunfo da produção está na exploração e desdobramento do desconhecido, o que, todavia, como já dito, é prejudicado pela racionalidade das explanações.

Ainda assim, é interessante reconhecer o bom trabalho autoral marcante da direção de Shyamalan. Os mais conhecedores de suas obras vão notar os aspectos que compõem o estilo singular do cineasta, destacando aqui, o uso de multiplanos para engajar o público durante as cenas, dinamizando e mudando os focos enquanto toda a ação dura, preparando-nos assim para o que vem depois ao construir gradativamente o suspense. Com o uso de três camadas de profundidade, além do movimento constante da câmera, a direção manipula seus personagens de um lado para outro, materializando a sensação de estarem perdidos, o que funciona na maior parte do tempo, vacilando apenas ao excessivamente repetir situações em que um personagem distancia-se do grupo, sem explicações, e todos questionam seu paradeiro.

Tempo incorpora a filmografia de Shyamalan com acertos e equívocos, não se distanciando das marcas pelas quais o realizador é conhecido. A trama tem ousadia na proposta e boa execução, mas se perde ao longo do percurso ao se desviar do que a faz especialmente intrigante.

Tempo estreia em 29 de julho nos cinemas de todo o Brasil.

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