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Geraldo Pinho (1950-2021)

Feliz daquele que conheceu o “cinemêro” mais amoroso do Recife.

Por Luiz Joaquim | 09.11.2021 (terça-feira)

– acima, Geraldo Pinho no Cine São Luiz, em 2015, em foto de Diego Nigro

Quando ele atendia o telefone, com a sua voz de trovão, dizia alto, assim: “LUIZ JOAQUIM!”, como quem diz um “SIM”, com uma convicção de quem convenceria o mais cético. Não credito tal convicção à minha pessoa. Sei que Geraldo Pinho atendia prontamente a todos (e não apenas por telefone) com o mesmo carinho e com a mesma assertividade. Isso era ele.

A partir dessa lembrança, é um tanto perturbador ter de me habituar com a ideia de falar sobre ele no tempo passado. Antes de continuar, digo que escrevo essas palavras agora quase sem conseguir processá-las coerentemente. E, ainda que tente aqui redigir um texto jornalístico, com dados precisos e honrando a memória desse lindo ser-humano e competentíssimo profissional do cinema que nos deixou hoje, aos 70 anos de idade, após passar mal enquanto dormia, já peço licença ao leitor para colocá-las na primeira pessoa do singular, porque é do amigo Geraldo que irei falar.

No início de 2020, fiz uma última entrevista, de maneira mais formal, com Geraldo Pinho, para um projeto paralelo, e dela tive o desejo de desdobrar em algo mais específico, sobre a própria trajetória de Geraldo no cinema. Não consegui. Mas trago aqui algumas de suas memórias que ajudam a rascunhar essa paixão pelo cinema, que lhe “salvou” quando chegou ao Recife ainda criança.

Geraldo chegou na capital pernambucana do Sudeste, veio da cidade de Santos. Lá no litoral paulista, perto de onde morava, a cerca de 50 metros, havia um cinema, e sempre que saía de casa, obrigatoriamente, passava na frente da porta dessa sala. Não apenas passava. Entrava lá. Vivia dentro daquele espaço o máximo de tempo que lhe deixassem ficar.

Já no Recife, com 10, 11 anos de idade, foi aprovado na seleção da Escola Industrial Professor Agamenon Magalhães (hoje Escola Técnica Estadual Prof. Agamenon Magalhães, no bairro da Encruzilhada) e lá acompanhava as sessões de cineclube da escola, todos os sábados, por cerca de três anos.

Quando adolescente, tornou-se um frequentador assíduo das sessões do chamado Cinema de Arte, que Fernando Spencer e Celso Marconi promoveram em diversas salas da cidade. Delas, Geraldo guardava diversas recordações. Umas divertidas, outras orgulhosas.

No seu cinema preferido, o gigantes Coliseu, com seus cerca de 2.000 lugares, antigamente localizado no número 2467 da Estrada do Arraial (bairro da Tamarineira), Geraldo pôde acompanhar pela primeira vez, no final dos anos 1960, uma mostra de cinema dedicada integralmente a um país estrangeiro, o que lhe marcou bastante.

Fiel ao espaço, ia a todos os lançamentos do Coliseu. Era o seu cinema obrigatório. Certa vez, ocupou sozinho o auditório do seu templo para ver A última sessão de cinema (1971), do Peter Bogdanovich. Geraldo contou que caía um temporal inacreditável sobre o Recife naquela noite de sábado, mas mesmo assim seguiu para a Estrada do Arraial. Atravessando a rua alagada, chegou lá e perguntou ao bilheteiro: “Vai ter sessão?”, o bilheteiro olhou desconfiado, mas confirmou que sim. Geraldo pagou, entrou, e, na gélida temperatura do ar-condicionado do gigante cinema, viu sozinho o drama estrelado por Jeff Bridges e Cybill Sheperd.

De tanto ir ao Coliseu, tornou-se amigo de outros frequentadores que moravam em frente ao cinema, na Vila do Comerciários.

Já no Cine Trianon, no Centro do Recife, em 1968, não perdia as sessões no sábado às 10h. Naqueles dias e horários, precisava burlar o trabalho na Imprensa Oficial do Estado (depois Companhia Editora de Pernambuco – CEPE). O endereço era ali próximo do cinema, na rua da Concórdia. Como o serviço era pouco no sábado, Geraldo fazia tudo rapidinho e fugia pro Trianon. Certa vez, ao entrar no auditório da Av. Guararapes, deu de cara com o diretor da Imprensa Oficial. O que vale, contava Geraldo, é que o outro era também um apaixonado por cinema, e perdoava a falta de seu funcionário.

Dali, Geraldo recordava de um bang-bang exibido com os rolos fora de ordem, e com a plateia aos berros reclamando da aparição, no final, de um personagem que já havia morrido no “início” da história; e também da sessão de Encurralado (1971), de Steven Spielberg, sessão da qual, nas palavras de Geraldo, saiu “empenado”.

Do vizinho Cine Art-Palácio, o “cinemêro” Geraldo nunca esqueceu de uma mostra de cinema cubano programado em plena época da linha dura da ditadura militar.

Durante os anos 1970, assim como todos entusiastas do cinema no Recife, se aproximou da possibilidade de fazer filmes pela tecnologia do Super-8. Até que, em 1978, foi premiado no 2º Festival de Cinema Super-8. As sessões ocorreram no Instituto Interescolar Luiz Delgado, na praça 13 de Maio, de onde saiu com o título de melhor filme do júri popular e o 2º lugar do júri oficial pela sátira A batalha dos Guararapes II, codirigido com Fredi Maia e Ricardo Antunes.

Antes do filme ser projetado, a tensão era enorme. Geraldo e os amigos não sabiam se a plateia iria assimilar a ironia que o filminho propunha sobre o fiasco que foi a megaprodução A batalha dos Guararapes (1978), rodada no Recife sob direção do mineiro Paulo Thiago. Mas a sessão foi inesquecível, com o auditório inteiro vibrando com a brincadeira. No filme coassinado por Geraldo, a batalha se referia ao pesado trabalho dos garis do Recife em limpar a Av. Guararapes na quarta-feira de cinzas.

Como a justiça social sempre esteve em pauta na vida de Geraldo, por essa época ele se envolveu com o assunto de maneira mais afirmativa, e foi um dos diretores – ao lado do professor Paulo Rubem Santiago (conforme este registrou em seu Facebook) –, da então Apenope (hoje Sindicado dos Trabalhadores em Educação do Estado). Ainda conforme Paulo Rubem, Geraldo esteve à frente, ao seu lado, numa greve estadual de ensino, em 1979, em pleno governo do presidente Figueiredo.

Material de divulgação do Cineclube “Leila Diniz”, início dos 1980 (acervo de GeraldoPinho)

Mas o cinema não deixava Geraldo, e ele voltou a participar de um outro cineclube, o “Leila Diniz”, em Olinda. A homenagem à atriz brasileiro se deu porque questões feministas já estavam na pauta do grupo que criou o cineclube. E, na ocasião, Geraldo foi tomando conhecimento sobre os meandros de uma programação cinematográfica. Ali, nos primeiros três anos da década de 1980 – tempo de existência do cineclube -, entendeu os princípios que o norteou como grande programador que viria a se tornar.

Geraldo Pinho na Spia Vídeo, meados dos anos 1980 (acervo de Geraldo Pinho)

Ao final do “Leila Diniz”, a mesma turma do cineclube criou a Spia Vídeo, que, conforme conta Geraldo, “durante dez anos, foi a maior produtora daqui do Recife”. Geraldo também se ocupava em dar aula de fotografia, na Escola Técnica Estadual, a mesma na qual estudou. Nos anos 1980, sua atuação fazendo cinema passava principalmente pela fotografia e um dos destaques daquela década foi o média-metragem de 59 minutos, em 16mm, Acredito num mundo melhor (1981-82), de Jussara Queiros, no qual coassinou a assistência de direção de fotografia.

O documentário discorria sobre as várias formas de organização comunitária e a respeito das condições de vida dos camponeses no Brasil, além da participação da Igreja na luta pela terra no Nordeste. O filme trazia depoimentos de gente como Dom Helder Câmara e foi vencedor de melhor fotografia no festival de curta e média-metragem de Niterói (1983), do prêmio de melhor roteiro no RioCine Festival (1983), além de ter recebido a Margarida de Prata da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o título de melhor filme no Festival de Cinema de Mannheim-Heidelberg (1986), na Alemanha.

Ficha técnica, publicada na revista “Cinemin”

No ano de 1992, uma curiosidade. Geraldo foi visto muitas vezes na televisão dos pernambucanos, numa certa publicidade produzida pela agência Itaity para as Casas José Araújo. A situação mostrava um bando de marmanjos no carnaval, vestidos de mulher, fazendo uma, digamos, “serenata” para a musa Davanira. Geraldo aparece empunhando um pandeiro e com um biquini azul. Impagável.

 

No ano seguinte, ele era convidado a assumir, em abril de 1993, a programação do Cineteatro do Parque e ali faria história. Abriu com Rádio Auriverde, de Sylvio Back, e, depois, fez do espaço notícia nacional particularmente por aliar uma tripla combinação difícil: atrair um bom público popular para acompanhar uma programação inteligente ao módico preço de R$ 1,00.

Geraldo Pinho como programador do Cineteatro do Parque (em 1999), na foto de Hans V. Manteuffel,

Lá no início da retomada do cinema brasileiro, por exemplo, Carla Camuratti fez questão de exibir seu já histórico Carlota Joaquina: A Princesa do Brazil (1994) no cinema da rua do Hospício.

Geraldo, na frente ao Cine São Luiz, recebendo o projetor DCP, em 2015. (foto de Milena Evangelista)

Após nove anos no Parque, tendo também assumido o Cineteatro Apolo entre 2000 e 2002, Geraldo passou a gerenciar o Museu da Imagem e do Som de Pernambuco (Mispe), ao qual agregou a função de programador do Cinema São Luiz, na segunda quinzena de março de 2011, a convite da Secretaria de Cultura do Estado.

Nessa última década, o “cinemêro” Geraldo Pinho fez o que mais gostava – e fazia bem, como poucos – que era pensar a programação de uma sala de cinema (e não, qualquer cinema) a longo prazo. Sem Geraldo, o Cinema São Luiz não teria o respeito e o reconhecimento conquistados após o Governo do Estado de Pernambuco comprá-lo do Grupo Severiano Ribeiro em 2008. Geraldo trabalhou pesado nos bastidores, mas também com amor pelo simples fato de estar numa sala cinema, que vem a ser, para quem ainda não sabe, a essência de um “cinemêro”.

Geraldo, meu amigo, vá em paz e obrigado, obrigado, obrigado.

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