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Morre Saulo Pereira de Mello

O arquivista foi um dos principais responsáveis pela restauração de “Limite”, de Mário Peixoto.

Por Luciana Corrêa de Araújo | 27.04.2020 (segunda-feira)

Um dos dez mais importantes filmes já feitos no Brasil – Limite (1931), de Mário Peixoto – só é possível de ser visto hoje (e para sempre) por conta do trabalho, nos anos 1970, de seus empertigados restauradores, com destaque para o trabalho fundamental de Saulo Pereira de Mello, também responsável pela criação e direção do Arquivo Mário Peixoto.

Saulo Pereira de Mello faleceu ontem (26), aos 87 anos, como vítima do novo Coronavirus. A pesquisadora Luciana Corrêa de Araújo gentilmente compartilhou com o CinemaEscrito seu registro sobre a importância do restaurador e arquivista:

Luciana Corrêa de Araújo:

“Uma tristeza saber da morte de Saulo Pereira de Mello, grande responsável pela restauração de Limite e pelo Arquivo Mário Peixoto, junto com sua esposa Ayla.

Saulo foi muito generoso quando eu estava fazendo pesquisa sobre Joaquim Pedro de Andrade. Conversamos longamente sobre os anos no curso de Física da Faculdade de Filosofia, o cineclube que eles criaram, as primeiras experiências com cinema que fizeram. Seu depoimento – revisado, corrigido e complementado por ele na correspondência que mantivemos nos meses seguintes – foi uma das fontes centrais do meu trabalho.

Plínio Sussekind Rocha, falecido em 1972, prof. e amigo de Saulo.

Sinto por nunca ter visitado o Arquivo Mário Peixoto, fruto da paixão de Saulo por Limite, pelas obras e trajetória de Mário Peixoto, pelo cinema silencioso. Todos os trabalhos de Saulo são também homenagens apaixonadas ao amigo e mestre Plínio Sussekind Rocha, com quem teve aulas de Física na Faculdade de Filosofia.

Saulo abraçou inteiramente, e desde então por toda sua vida, o universo de Limite e do cinema silencioso que lhe foi apresentado por Plínio. Quando deixou o cineclube que ele havia criado com o colega Mário Haroldo Martins, o Centro de Estudos Cinematográficos, e do qual Joaquim Pedro participava junto com a então namorada Sarah de Castro Barbosa. Saulo costumava dizer: “Estou saindo do CEC para ir para o Chaplin-Club”. Não era só uma frase espirituosa, mas a definição mesma do seu projeto de vida.

Saulo deu continuidade ao pensamento do Chaplin-Club e das discussões promovidas na publicação O fan. Em meados dos anos 1990, quando conversamos e revisamos seu depoimento, ele continuava a defender a autonomia cinematográfica, a montagem e a discutir a perda que a fala significou para o cinema – posições do Chaplin-Club que já no início dos anos 1930 eram consideradas por muitos como ultrapassadas. Não para Saulo.

Transcrevo um trecho da entrevista, em que ele combina Física e reflexão cinematográfica, como o dedicado discípulo de Plínio Sussekind Rocha que nunca deixou de ser”. 

Saulo:

O fundamental é que ambos ficam no plano das imagens – e o que é pior: as imagens, pelo som, perderam a autonomia expressiva e são subsidiárias do que se diz. Agora e por causa do som, fica-se no plano do conceitual. Os filmes discutem ideias, conceitos… Fica-se no plano conceitual. A ‘estética’ silenciosa é que ambos ficam no plano das imagens, se preocupam apenas com o conceitual – e o que é pior: subordinam a imagem à fala. A fala tira, priva, a imagem de sua autonomia expressiva e impede a capacidade de transcendência dela. Na verdade, do ‘conflito’ entre elas. A estética do silencioso não se funda na ausência de fala, do som, embora tenha se constituído a partir dessa ausência – ausência que obrigou a imagem a procurar sua autonomia expressiva e pela manipulação delas – isto é, a montagem – conseguir a transcendência.

É como o foguete em ângulo que transporta um satélite: ele deve alcançar a velocidade de escape, senão não sai da órbita da Terra. O cinema tem que procurar a ‘velocidade de escape’, tem que transcender a imagem. Isso ninguém teve no Brasil senão Mário Peixoto. Não posso exigir isso do Joaquim Pedro – e nunca exigi ou esperei; mas, quando julgo, tenho que julgar por esse padrão, que é o meu.

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