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Festivais

21. Tiradentes (2018) – Lembro Mais dos Corvos

Gustavo Vinagre assina e nos apresenta um longa-metragem necessário.

Por Luiz Joaquim | 27.01.2018 (sábado)

*exibição de Lembro mais dos corvos, no Cine Tenda. Foto de Jackson Rmanelli/Universo Produção.

TIRADENTES (MG) – Chegou ontem (26) ao fim a projeção do programa “Aurora” dentro da 21a Mostra de Cinema de Tiradentes. Foram exibidos no Cine Tenda os dois últimos longas-metragens, de um total de sete, que concorrem ao Troféu Barroco. Lembro mais dos corvos, veio de São Paulo, apresentando ao mundo a primeira incursão de Gustavo Vinagre num trabalho de maior minutagem; tal qual André Morais com seu Rebento, este oriundo da Paraíba.

O título do filme de Vinagre vem de uma fala da protagonista de seu documentário, a atriz e cinéfila Júlia Katharine, quando ela recorda detalhes de Os pássaros (1963), de Alfred Hitchcock. Velha conhecida (e querida) do diretor, Júlia é reconhecível no cinema pelas participações nos curtas de Vinagre.

Neste longa de estreia, Júlia é o filme. São 81 minutos com Júlia, e apenas ela (além de seu papagaio de nome Nuvem) na sala de seu apartamento tomando a tela por uma noite inteira pela qual desfia sua vida. Mas o que há de tão interessante nesta vida? Muito e algo mais.

O algo mais diz respeito à própria existência de Júlia na sociedade. Para além do ser-humano que é, sendo ela uma mulher trans, Júlia, por meio do filme transmuta-se numa referência. Louvável, registre-se.

A sobriedade na direção de Vinagre aqui, totalmente amparado pela lucidez de Júlia em seus depoimentos, reside principalmente num sentido: sua vida até ali foi muito dura, como se imagina ser a vida de uma pessoa massacrada pelo preconceito. Só que Júlia dosa os episódios que revela com clara serenidade. Num equilibrado domínio (ou tentativa de domínio) sobre suas dores diante da tela, ela parece reconhecer a medida certa da dimensão e/ou importância de suas experiências para o mundo.

“Você acha mesmo que isso vale a pena?”, provoca ela, em diálogo com o diretor fora de quadro, antes de prosseguir.

Alternando tons mais cautelosos, na escolha das palavras (para falar de um abuso na infância, por exemplo), com outros em que sorri ao lembrar que precisou passar 24 horas numa boate porque fecharam a casa com ela dentro, Júlia e Lembro mais dos corvos não abre espaço para sentimentos pequenos no espectador, como pena, mas sim para outros nobres, como a empatia e a compaixão (a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro).

Julia em cena de “Lembro Mais dos Corvos”.

É este o tipo de filme que encurta a distância entre a ignorância e o conhecimento.

Pela ótica cinematográfica, Lembro mais dos corvos é feliz em sua concepção tecnicamente simples e linguisticamente provocante. A intimidade e o amor de Júlia pelo cinema, fazem dela um personagem ativo por quase toda extensão do filme. O que estimula refletir sobre aspectos mais verticais a respeito de autoria e auteridade. O próprio desfecho do filme parece sublinhar tal ponto com um pincel atômico e, ainda assim, sem soar forçado.

O resumo é que Lembro dos corvos chega como um filme que reforça a necessária compreensão de que de perto, como diz Christopher Zagato Lima, somos todos loucos. Mas também podemos nos enxergar iguais.

*Viagem a convite da Mostra

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