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Críticas

A Grande Mentira

Reviravoltas na terceira idade, para o bem das próximas gerações.

Por Felipe Berardo | 20.11.2019 (quarta-feira)

Amanhã (21) estreia A grande mentira (The good liar, EUA, 2019), thriller produzido numa lógica não muito mais presente por estúdios de Hollywood. O filme, baseado no livro homônimo escrito por Nicholas Searle é um puro veículo de estrelas que confia no carisma e força dramática possibilitada por seus atores principais para criar investimento por parte do público, isso ainda com um orçamento razoavelmente pequeno, de dez milhões de dólares, para o padrão hollywoodiano.

A parte mais interessante, no entanto, é que essa uma rara narrativa sobre protagonistas septuagenários que aproveita a incomum oportunidade para escalar como intérpretes principais o renomado ator indicado ao Oscar, Ian McKellen, mais conhecido como figura importante no universo de O senhor dos anéis e de X-men, junto à ainda mais renomada atriz, Helen Mirren, vencedora do Oscar por A rainha e do prêmio de Melhor Atriz em Cannes.

O longa dirigido por Bill Condon (A bela e a fera; A saga crepúsculo: Amanhecer) conta uma história essencialmente ligada à idade dos personagens, passando por questões ligadas à culpa e aos traumas carregados tanto pelo passado individual próximo quanto pelo passado histórico já distante e à possibilidade de redenção que apresenta-se por situações inesperadas.

Em termos mais concretos, o filme começa na Inglaterra com um encontro marcado via site de encontro para viúvos entre o humilde e carismático Roy Courtnay (McKellen) e a rica e ingênua Betty McLeish (Mirren) que logo, através de uma troca de revelações sobre mentiras contadas entre si por mensagens, parecem possuir certa química e marcam novos encontros entre si. Não demora muito, porém, para Roy revelar-se como um calmo e lustroso golpista com uma clara disposição para calculados ataques de violência.

O filme, então, passa a funcionar numa lógica de meias verdades e mentiras, não permitindo que quem assista saiba imediatamente as intenções dos personagens ou a exata extensão das trapaças sendo realizadas aqui. Tudo é felizmente disposto num calculado malabarismo de enganações em que a única certeza por certo tempo é que há um golpe maior em andamento, até que eventualmente tudo torna-se mais e mais claro.

O filme, então, pela maior parte de sua duração de 109 minutos não questiona se Roy é realmente honesto ou desonesto, mas transforma-se num dilema moral para determinar se ele é corrupto demais para endireitar-se e aceitar algum tipo de redenção através de qualquer compaixão para o próximo, mesmo que direcionada para alguém em específico.

Tudo isso mistura-se também a questões históricas ligadas à 2ª Guerra Mundial, o holocausto e o nazismo que serviram não só como pano de fundo para a infância dos personagens principais, mas como elementos fundadores essenciais na vida desses. Essa mistura de temas e questões históricas não muito distantes de uma narrativa prestigiosa e austera como O leitor ou O paciente inglês com obras de mistério e thrillers fascinados por reviravoltas como Garota exemplar ou Oldboy parece não ser sempre tão bem sucedida, no entanto.

 

O maior questionamento, na verdade, está especialmente no trecho final que faz com que a maior virada de roteiro presente aqui reconstrua de forma satisfatória e inesperada diversos elementos presentes sutilmente pelo filme como é comum em obras do tipo, porém essa virada ao mesmo tempo acaba por determinar de maneira retroativa o final apresentado como único possível, retirando quase todo o peso dramático da escolha final do arco do personagem de Ray.

A realidade é que a revelação final apresenta mais do que fatos importantes escondidos do público, mas também que a história apresentada é, na verdade, de Betty como protagonista, por mais que não seja aparente até seus últimos momentos. O homem corrupto que conhecemos parcialmente e somos levados a empatizar, até onde possível, pelo simples fato desse ser personagem principal da narrativa tem essa posição de poder sobre outros indivíduos retirada à força pela personagem previamente marginalizada, com destino posto nas mãos desse homem.

Há um poderoso comentário político nessa troca de poderes com a mulher, aparentemente ingênua, assumindo o protagonismo final para si, não sozinha, mas com a ajuda de outras figuras menos favorecidas para tal.

A última imagem do filme com garotas brincando de vestido num lago parece finalmente conseguir entregar um espaço seguro construído por essa antiga geração de pessoas menos favorecidas para a vivência das gerações por vir, sem a presença desses homens corruptos. Ainda que com medo e com o receio presentes naqueles já traumatizados, o conforto e bem-estar permitidos à juventude nesse novo mundo abrem caminho para a esperança daqueles que sofreram traumas até esse ponto. Não há redenção maior que essa.

 

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