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Críticas

A Morte Habita à Noite

Dores de amor e do álcool em um desvalido no Recife pelo belo longa-metragem de estreia de Eduardo Morotó

Por Luiz Joaquim | 19.12.2020 (sábado)

Pelo menos uma imagem gráfica, impressa nos frames de A morte habita à noite (Bra., 2020), de Eduardo Morotó, nos remete a Barfly: Condenados pelo vício (1987), dirigido Barbet Schroeder e escrito por Charles Bukowski. Está nas primeiras imagens do brasileiro, com Lígia (Mariana Nunes) empinando a perna para o alto para acariciar com o pé o rosto do protagonista Raul (Roney Villela). Nos lembra a Wanda (Faye Dunaway), com suas pernas em destaque, alisando o adorável bêbado Henry (Mickey Rourke) criado por Bukowski.

Morotó, 37 anos, nascido em Caruaru e com formação em cinema e início de carreira construída no Rio de Janeiro, não esconde a referência. Pelo contrário, a explicita na apresentação dos créditos finais deste seu primeiro longa-metragem. Mas nem era preciso para quem já conhece seu curta-metragem Quando morremos à noite (2012), baseado em A mulher mais linda da cidade, do desregrado escritor de inspirações Beatneak. [Veja o filme Quando morremos à noite clicando aqui]

O ator Roney Villela retorna no longa ao personagem muito próximo que foi seu no curta mas, desta vez, não ambientado no Rio de Janeiro e sim no Recife. Raul é um cinquentão em boa forma física, ainda que contrastando com a rotina punk de descuido e das incertezas do dia-a-dia sem dinheiro. Vive ao lado da companheira Mariana, que lhe cobra uma ocupação para pagar as contas. Residem num muquifo, um apartamento velho, sujo e com entulho, mas, num certo sentido, acolhedor. Com isso validado pelo amor do casal.

Aqui vale um parágrafo para falar da ambientação criada pela direção de arte de Júnior Paixão bem casada com a fotografia de Marcelo Martins Santiago. O apartamento de Raul, cuja vista dá para a praça redonda do sebo no Recife, funciona como uma paisagem externa que reflete o interior de Raul. Esse cara tranquilo, que toca a vida regada a vinho ruim e bom sexo com a mulher que ama. Raul é gentil, amoroso e bagunçado exatamente por entender que tudo o que ele precisa ele tem, e está nesses dois elementos, até perder um deles: Mariana.

Mariana Nunes e Roney Villela em cena de “A morte habita à noite”

Sem seu amor e sem ter onde morar, muda-se solitário para outro muquifo ainda mais desprovido de boa estrutura mas, mais uma vez, tão bem resolvido pela arte de Júnior Paixão que se mostra coerente e também confortável para o protagonista. Como um encaixe correto entre personalidade e cenário.

Na verdade, Villela merece muito crédito aqui (e foi reconhecido, tendo sido premiado no 30º Cine Ceará como melhor ator). Ele perambula ou cambaleia com elegância e, por que não, com charme pela sarjeta que é a sua residência e o próprio Recife no filme de Morotó. Sem falar nos bicos que arruma como peixeiro no Mercado São José ou mecânico numa oficia pé-de-escada. Esse é, a propósito, outro mérito no trabalho do roteirista-diretor: dar tempo suficiente ao espectador para quase sentir o cheiro que impregna os ambientes sujos que circundam a vida de um desvalido e, com isso, nos fazer ficarmos mais próximo a ele.

Sobre o charme de Raul (“minhas pernas venceram concurso de beleza”, ele brinca), é ele o responsável por atrair a muito jovem Cássia (Endi Vasconcelos) que conhece, obviamente, num bar. Cássia é também uma outsider cujo passado de abusos na família a levou à “vida fácil” (com aspas bem grandes) e, ao encontrar Raul se depara com o parceiro ideal para suportar a vida. Mas, para além disso, a menina injeta energia, alegria neste cinquentão amargurado que, a certa altura, começa a, literalmente, cuspir sangue pelo tanto de excessos cometidos contra o corpo.

Villela e Endi Vasconcelos em cena de “A morte habita à noite”

Sempre com um cigarro no bico, garrafa na mão e um ar resignado, ou melhor, despreocupado, Raul é composto com precisão por Villela. O personagem parece escrito para o ator (e não há melhor elogio que este). É verdade que, de início, o trabalhado sotaque recifense destoa um pouco até encontrar seu tom certo a ponto de, num imaginário crossover de super-heróis do cinema feito em Pernambuco, pensarmos o quanto seria bom o encontro de Raul com a Clara de Sônia Braga (Aquarius) num boteco pé-sujo no bairro de Afogados.

Raul é um dos raros personagens masculino transitando no cinema brasileiro de um 2020 pautado (ainda bem) pela diversidade sexual. Mas, como é próprio desse tempo, temos aqui um homem hetero, cis, branco que é digno com as mulheres, pois só assim lhe cabe um título de herói. Essa linha delicada a cuidar, foi traçada de forma maestral pela criação de Morotó e composição de Villela.

Sendo o sexo algo intrínseco à vida do protagonista, não seria surpresa ver cenas envolventes de sexo em A morte habita à noite, mas, ao contrário do que vemos no curta de oito anos atrás, elas não estão no longa-metragem de hoje. Está, porém, em primeiro plano, o erotismo que reside nos movimentos e nos diálogos que pontuam a relação de Raul com suas mulheres. Morotó parece ter encontrado assim um arranjo afinado entre o rigor profissional para um set de filmagens e a necessidade de traçar na ficção a personalidade de um escritor marginal brasileiro.

Nota da coluna Camêra clara 31, de 4 de agosto de 2006, originalmente publicada na Folha de Pernambuco Eduardo Morotó, jovem, de 23 anos, morador do município de Frei Miguelinho (PE) foi contemplando pelo “Revelando os Brasis Ano II”. A ficção “Agreste Adentro” conta a história de Damião, um menino que sonha poder reencontrar o pai. No elenco, Prazeres Barbosa contracena com moradores de Frei Miguelinho.

Leia também crítica escrita por Marcelo Ikeda por ocasião do lançamento de A morte habita à noite em janeiro no Festival de Roterdã

Para ler sobre os bastidores da gravação de A morte habita à noite, em 2017 no Recife, clique aqui. Ainda no elenco do filme: Rita Carelli e Pedro Gracindo.

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